Revista Rua

2019-07-26T15:02:52+01:00 Opinião

Afogamentos

Palavras
Paulo Brandão
26 Julho, 2019
Afogamentos

Errol Flynn morreu com 50 anos, tendo sofrido um ataque cardíaco fatal em 1959, numa viagem a Vancouver. Com ele estava Beverly Aadland, de 17 anos, ao que consta, a sua última companheira (desde os 15 anos, embora ele fosse casado). O seu último filme, feito naquele ano, tornou-se de culto e tinha por título Cuban Rebel Girls. A ideia de criar um objeto libertador, longe do grande herói dos anos 1930 e 1940, levou-o até Cuba, perto dos ares primitivos do Sul que o deixassem envelhecer sem mácula. As suas memórias não escondem os seus problemas com o álcool e no filme citado há mesmo quem lhe pergunte:

– Como é que você parece tão jovem nos filmes e tão velho agora?

Liev Tolstói nasceu em 1828, em Iássnaia Poliana, propriedade familiar de sua mãe, de onde nunca terá saído. Teve 13 filhos, o amor da esposa (princesa), e escreveu Anna Karenina e Guerra e Paz, e entre outras obras maiores e menores o seu sucesso era enorme. O intrigante, ou não, é que, de repente, o escritor russo afunda-se numa crise espiritual e confessa que só pensava em morrer. Primeiro quer ver-se livre de toda a propriedade e dos direitos autorais por volta de dez milhões de rublos de ouro. O conflito familiar gera-se e, pasme-se, o conde, de 82 anos de idade, decide fugir às escondidas rumo a sítio nenhum. A evasão de Poliana terminaria dez dias depois, com a morte de Tolstói. Pneumonia.

– Como é que ele, tão velho, parece tão jovem encetando tão misteriosa fuga?

Calouste Gulbenkian, arménio de nascimento, “o homem mais rico do mundo”, em muito devido à famosa “linha vermelha”, por si criada em 1928, criando, assim, um monopólio de exploração de petróleo no que restava do então Império Otomano. Em Portugal, viveu no Hotel Aviz, ocupando cinco suites das 33 existentes. A escolha deveu-se, sobretudo, à segunda guerra mundial e em Lisboa viveu anos decisivos (1951-1955). A nota que mais curiosidade suscita, além de viver grande parte da sua vida em quartos de hotel, é a relação com a mãe. Conta-nos o seu mais recente biógrafo (Jonathan Conlin), que Gulbenkian terá dormido no quarto da mãe até aos 14 anos e que não compareceu ao seu funeral. Um mistério, aliás como a data precisa do seu nascimento.

– Como é que um homem tão rico, e digo-o em muitos sentidos, não quis (ou não pôde) despedir-se da mãe?

As biografias podem ter tantos mistérios. Mais até que as autobiografias, que normalmente são mais literárias e, diria, ficcionais (no sentido de romanceadas). Umas mais factuais, outras mais inspiradas pela memória, pelos afogamentos de vida que os autores querem de todo deixar debaixo de água. Mistérios que não devem chegar nunca à superfície.

Por vezes, há escritores tão obcecados com a história futura e os leitores vindouros que chegam a corrigir e a controlar tudo o que assinam. Exemplo bravo disso é Vladimir Nabokov. Pense-se, por exemplo, em Opiniões Fortes, cujas respostas foram revistas e revistas pelo entrevistado, antes da edição em livro. Diz ele a propósito, em 1973: “É tão raro a minha ficção dar-me oportunidade para arejar as minhas opiniões pessoais que é com prazer que de vez em quando são bem-vindas as perguntas que visitantes encantadores, corteses e inteligentes me fazem em torrentes repentinas”. Mas o encanto da coisa é que Opiniões Fortes é seguido de algumas cartas a editores, que são “autojustificativas”, como dizem na sua maneira precisa os advogados, no sentido de aprimorar o que havia gravado.

Não há bela sem senão.

No caso de Nabokov, fascina-me o fascínio que tinha pelas borboletas. A escrita e a caça aos lepidópteros exigem paciência e minúcia. No livro citado, ele diz que nunca julgou ser escritor e sempre sonhou ser curador “obscuro” de borboletas em um grande museu.

– Como é que um homem, autor de obras primas como Lolita, nunca pensou na escrita como uma carreira mas antes como “um passatempo”?

Sobre o autor
Diretor artístico do Theatro Circo

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