Revista Rua

2019-09-27T11:54:23+01:00 Opinião

Meia dúzia de palavras

Crónica
Francisco Santos Godinho
19 Setembro, 2019
Meia dúzia de palavras

Consegues dormir com todo este silêncio ou sou apenas eu que ouço estas conversas comigo através das sombras e das trevas? Não espero que me respondas agora que os miúdos estão na cama, mas amanhã de manhã, suponhamos que pergunto de novo, explicavas-me isso, só isso e depois deixo-te em paz. Mudaste-te com dois filhos para esta casa, vivo aqui desde os catorze e agora quarenta e seis vê bem que já se nota que quarenta e seis sem precisares de perguntar, mas o estuque que teima em sair nos ângulos das paredes com o tecto, as duas poltronas já transfiguradas, uma delas com uma cova gigante que tu não preenches porque és magríssimo e o meu pai, engraçado agora o meu pai, lembras-te do silêncio que pelos vistos não te incomoda e que fala comigo nestas sombras, a mudez do meu pai não mudou nada desde a última vez, reprimia as palavras, seria livre de falar, mesmo já sem a minha mãe

– A tua mãe

e o pai nunca disse isso, pareceu-me ouvir, virado para o farmacêutico

– A patroa

com um sorriso escondido no lenço com que tapava a tosse, e o pai que nunca falava, tantos contornos esbatidos em torno dessa sua sombra que ecoa nas esquinas dos quartos, na esquina da varanda, pensa-se que o vento e vento nenhum, é o pai, não pense que não dou por si, não pense que são só imagens e sons seus presos dentro de uma bolha de sonho, dentro da bolha da memória e dentro da outra bolha que sou eu, sozinha na casa, contigo que não me falas como o meu pai calado, mas isso dava para outra história, então, se não te importares, amanhã, explica-me só isso.

Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.

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