Consegues dormir com todo este silêncio ou sou apenas eu que ouço estas conversas comigo através das sombras e das trevas? Não espero que me respondas agora que os miúdos estão na cama, mas amanhã de manhã, suponhamos que pergunto de novo, explicavas-me isso, só isso e depois deixo-te em paz. Mudaste-te com dois filhos para esta casa, vivo aqui desde os catorze e agora quarenta e seis vê bem que já se nota que quarenta e seis sem precisares de perguntar, mas o estuque que teima em sair nos ângulos das paredes com o tecto, as duas poltronas já transfiguradas, uma delas com uma cova gigante que tu não preenches porque és magríssimo e o meu pai, engraçado agora o meu pai, lembras-te do silêncio que pelos vistos não te incomoda e que fala comigo nestas sombras, a mudez do meu pai não mudou nada desde a última vez, reprimia as palavras, seria livre de falar, mesmo já sem a minha mãe
– A tua mãe
e o pai nunca disse isso, pareceu-me ouvir, virado para o farmacêutico
– A patroa
com um sorriso escondido no lenço com que tapava a tosse, e o pai que nunca falava, tantos contornos esbatidos em torno dessa sua sombra que ecoa nas esquinas dos quartos, na esquina da varanda, pensa-se que o vento e vento nenhum, é o pai, não pense que não dou por si, não pense que são só imagens e sons seus presos dentro de uma bolha de sonho, dentro da bolha da memória e dentro da outra bolha que sou eu, sozinha na casa, contigo que não me falas como o meu pai calado, mas isso dava para outra história, então, se não te importares, amanhã, explica-me só isso.
Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.