Revista Rua

2019-09-27T11:54:00+01:00 Opinião

Há quanto tempo não nos víamos?

Crónica
Francisco Santos Godinho
27 Setembro, 2019
Há quanto tempo não nos víamos?

O adeus insinuava-se no sorriso que esboçava entredentes e as paredes desbotaram lentamente a brancura, desbotaram igualmente os médicos, os enfermeiros, os pacientes e as máquinas, esfumou-se tudo num estalar de dedos, ficou apenas a cama, não uma cama de hospital, como se adivinhava antes do estalar de dedos, mas antes uma cama de madeira, com cabeceira e, nos pés, uma habitual catarata de lençóis esticados. O tecto, sumido com as paredes, desnudou o céu para si e para mim. Deu-me impressão que você ainda deitou um olho à televisão que, com toda a certeza, depois do estalar de dedos, havia desaparecido com os alicerces. Deu-me impressão de não existir idade, nem datas, nem tempo. Deu-me impressão de não ter escrito estas palavras absolutamente pasmado, sem perceber peva da vida, deu-me impressão que aos vinte anos sabia perfeitamente o que isto era, sabia quem era, sabia quem você era e, garanto-vos, não sabia. Não sei, continuo sem saber, continuo sem saber dizer adeus, dói-me saber que essas cinco letras encerram em si uma pretensão de finitude – como é que não se pode ter medo do que se sabe que terminará? O que há depois do término? Nada? Dói-me pensar num adeus, no fim do revolver de astros em que para aqui andamos, imagino sempre isto como um apeadeiro: uns que chegam, outros que partem e uma pessoa no banquinho da estação a sonhar com uma mão que nos acene ao ir embora ou um farol que se pareça com um olho de gente, brilhando uma pinga de sal na esquina da pálpebra enquanto permanecemos ali, sentados, vendo as caras que partem e nenhuma que chegue. Porquê? Continuamos sentados com a mesma questão, imaginando a imensidão dos anos de menino, perdidos no mar de memórias que nos sorriem tanto em certos dias e que, noutros dias, cabem na palma da mão de quem nos acena

– Até já do final dos carris, porque adeus demora muito tempo.

Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.

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