Revista Rua

2020-05-06T09:45:38+01:00 Opinião

Sons de Batucada

Viagens
Cláudia Paiva Silva
6 Maio, 2020
Sons de Batucada

“Samba de verdade tinha que ter o sal do batuque dos terreiros de Umbanda e Candomblé, uma batida grave pra marcar, umas agudas para recortar. Era só fazer a segunda e a primeira bem definidas, botar o ritmo pra frente, que nem se toca na macumba pra fazer santo baixar e subir quebrando demanda, levando o mal para sumir no infinito de Aruanda e espalhar a paz no coração dos filhos da terra. Essa coisa de ficar imitando os portugueses, os franceses, os argentinos estava na hora de parar. A boa era dar continuidade à batida que vinha dos países de África, das senzalas, dos quilombos, dos terreiros, do lundu. Samba pra desentortar esquina, tirar paralelepípedo do chão, engrossar a batata da perna, espantar os males de quem anda, canta e dança. Samba para se desfilar na rua.” (Paulo Lins, Desde que o Samba é Samba).

Sabe quem sabe que eu já habitei (ou pisei pé) em terras brasileiras. Sabe quem sabe que o Brasil teve para mim um impacto extremamente profundo, um sentimento de Casa e Terra-Pátria, mesmo que fosse por empréstimo temporário. Também se sabe que quando falo ou escrevo sobre o Brasil evoco terras, cidades, vilas e regiões que nem talvez muitos brasileiros alguma vez tenham conhecido ou possam vir a conhecer. Sei o quão privilegiada fui por ter conhecido tanto em tão pouco tempo e mais uma vez, sei o quanto isso me marcou na alma.

Contudo, também sinto que esta minha falsa modéstia possa parecer isso mesmo – uma modéstia muito pouco verdadeira – e que talvez seja demasiado emproada quando digo que conheço o Brasil. Não conheço. Ou como eles diriam, “não conheço porra nenhuma”, a não ser a ideia de que um país gigante, onde se perde fácil o conceito de escala humana e regional (6 milhões de habitantes apenas no Estado do Rio de Janeiro; distância São Paulo-Rio pela Via Dutra, umas 5 horas), pode ter dentro dele outros tantos países, credos, formas e culturas. Que o Sul é definitivamente mais rico do que o Nordeste, que o Nordeste é extremamente mais caloroso que outros estados, mas que no geral todos gostam de receber alguém que fala uma língua parecida com a deles, mas que na maioria dos casos nem entendem bem. Falamos estranho, com “chiado”, não somos do Rio, mas também não se sabe bem de onde somos.

Contudo, há uma cena que me lembro bem de me ter arrepiado. Nada que ver com violência ou insegurança. Simplesmente esteve relacionado com o som. Quando fui a Salvador, possivelmente a cidade mais portuguesa que conheci em toda a minha estadia, o som do berimbau foi escalando numa zona de ermo. Não sei o que era, mas sei que foi poderoso, estando logo ali. Salvador é uma cidade mística. E sim, tem toda a referência à colonização para lá de violenta, uma colonização de morte, de violação, de assassínio em massa, uma colonização forçada de fé, regada pouco depois pela forte cultura africana e escravizada. Mas a questão fundamental é? Para lá desse horror, do que é feita hoje a massa do brasileiro? Essa mescla imperturbável de africano, índio, português (ou de outro colono medieval). E qual é o verdadeiro som do Brasil? O típico samba ou o forró, certamente que não é apenas a bossa nova que resulta de forte influência de jazz norte-americano. O som é também essa coisa tão profunda e enraizada de sons africanos, a batucada, o misticismo e espiritismo que acompanham o ritmo.

Perdoem-me a minha arrogância, mas se há coisa que eu percebi do Brasil é que não há um único jeito de ser nem de estar. Não há um som típico ou uma forma de falar. É muito mais que isso, é Casa, Pátria, Crença, Tradição.

Saberiam por exemplo que no interior nordestino ainda se praticam costumes que só os judeus faziam no tempo em que eram perseguidos? Tal como junto ao Mar os Orixás são os reis do céu e das águas “Para quem está ainda mais fora do candomblé que eu, das religiões de matriz africana em geral, do complexo enredo dos seus Orixás, equivalentes a santos, entidades, seres sagrados: Oxum é a senhora das águas doces, da cor do ouro, uma das mulheres que o rei Xangô desposou, tal como a brava Iansã, senhora das tempestades.

A mais cantada mãe de santo do Brasil, Mãe Menininha de Gantois era uma filha de Oxum. (…) Como não haveriam os terreiros da Bahia de bater no peito da música popular, e assim em nós.” (Alexandra Lucas Coelho, Cinco Voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso).

Quem será o homem, presidente ou não para dizer como podem milhões viver ou pensar, se deles ele nada sabe ou se de seu próprio país ele nada conhece?

Se ouvisse direito o som da batucada iria entender tanto mais.

Nota: Este artigo não foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.

Sobre a autora:
Geóloga (do Gás e Petróleo). Autora de textos no blog A Carroça da Clau e simpática utilizadora de IG: @claudiapaivasilva e @urban_trender. Aficionada nas heranças culturais de Portugal e em chocolate.

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