A zet gallery é responsável pela coordenação artística do programa de residências artísticas do AMAR O MINHO, projeto promovido pelo consórcio MINHO que integra os 24 municípios do Minho. Pedro Figueiredo (n.1974) é um dos artistas convidados, encontrando-se a desenvolver uma obra de arte para o espaço público do Município de Caminha, concretamente para Moledo. Trata-se de uma homenagem a António Pedro (1909-1966) que ali se estabeleceu até à sua morte. Acompanhar o processo de conceção desta obra, inspirada n’ “A Ilha do Cão”, um óleo sobre tela do surrealista maior, devolveu-me a um texto que escrevi para o Pedro Figueiredo em 2019. Arrisco publicá-lo aqui, introduzindo nele referência a duas outras obras que marcam a nossa história partilhada: “A VIAGEM”, de 2018, que se encontra no antigo Convento do Pópulo, sede da Câmara Municipal de Braga; e “CALÍOPE”, de 2020, que presenteia o céu do histórico Café Vianna, também em Braga, e que lá foi colocada por ocasião do evento comemorativo dos 25 do Grande Prémio de Literatura dst.
Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política
nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que
pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos
absorvidos por ocupações mais seculares.[1]
Só a atenção profunda e contemplativa é, na realidade, capaz de captar o que é volátil, singelo ou fugaz, escreveu Maurice Merleau-Ponty [2] (1908-1961). O momento em que os meus olhos se cruzaram, pela primeira vez, com a surrealidade fórmica feita escultura de Pedro Figueiredo apeteceu-me que a hiperatividade da vida se interrompesse por momentos.
Há qualquer coisa no ritmo de todos os dias que entra em contraciclo nas suas sugestões poéticas. A escultura é sempre mais do que a matéria, é o cheio e o vazio, o espaço ocupado e o seu entorno, é o conceito assumido e a adjacência tentacular das leituras que permite. Em Pedro Figueiredo também é sonho e é sempre o desenvolvimento de um código semiótico de interpelação do real a partir do subconsciente que a técnica consegue traduzir. Naquele meu primeiro momento de encontro com o universo feminino particular do artista, que se viria a tornar amigo, lembrei-me de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e daquela carta, feita crónica, para o jovem Alípio, repleta de anti conselhos que, no meu caso, me encorajaram na construção de um eu literário de combate a autocensura sem medo da exposição; que se mune de referências sem medo de adjetivações académicas; e que usa a palavra como forma de luta, sem medo de acusações de politização da atividade criativa. Eu, como o Pedro, não nasci para os negócios, nem para a política, nem para o serviço militar. Nosso negócio é a contemplação da nuvem e percebi que comunicávamos com o mundo a partir de uma mesma energia e de um mesmo idioma: uma forma de estar que alinha os sonhos em dias e atos e que faz a vida girar perfilando idiossincrasias semânticas e vontades em direções a respostas. A arte é, porém, em “ato de expressão”. Até Nietzsche (1844-1900), que substitui o Ser pela Vontade, sabia que toda a vida humana terminaria numa hiperatividade fatídica, se fosse despojada de todo o seu lado contemplativo: “A falta de serenidade conduz a nossa civilização a uma nova barbárie. Nenhuma era valorizou mais os seres ativos, isto é, os inquietos. Uma das correções que urge, pois, fazer ao caráter da humanidade é desenvolver, e em grande medida, o seu lado contemplativo.”[3]
Inquietos e contemplativos. As esculturas de Pedro Figueiredo são parábolas, são metáforas, aliterações e pleonasmos vocabulares. São fábulas, pequenas narrativas da imaginação. Alimentam os nossos desenhos no ar que desafiam o nosso entendimento. Têm marcas, sobretudo as de resina de poliéster no cinza luminoso da matéria que adensa a estória no elemento colorido que lhe é somado: uma bola, um coração, uma lâmpada, uma joaninha, uma peça de xadrez, uma tesoura, um parafuso ou uma ausência. Composições simples em associações formais complexas. Um exagero das extremidades, um esticar dos corpos que nos sugerem sempre a geometria das coisas e uma manipulação das escalas e da relação entre os elementos. O real é referência mas é do surreal que vem a plasticidade, numa associação livre de formas e numa singular meta-leitura do que nos rodeia. Nada é o que parece ou tudo é o que nos apetece. Anti conselhos, voltando ao poeta: Dou-lhe anti conselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma.[4] O bem e o mal, dicotomia dos sentidos. A Arte como poética e a poesia como vício, confusão da transparência pois, segundo Nietzsche, tudo o que é profundo ama a máscara, o segredo, o ardil e o jogo[5].
CALÍOPE é uma das suas mulheres e uma homenagem à musa maior da poesia e, por isso, da Liberdade; e A VIAGEM evidencia que os seus projetos são surreais, horizontes e devaneios de infância, são alucinações freudianas, são estórias, sempre as estórias dos outros que desaguam em nós, recordando Gaston Bachelard (1884-1962):
A história – sempre a história dos outros! -, aplicada aos limbos do psiquismo, obscurece
todas as potências da metamnésia pessoal. Entretanto, psicologicamente falando,
os limbos não são mitos. São realidades psíquicas inapagáveis. Para ajudar-nos a penetrar nesses limbos da
antecedência de ser, os raros poetas vão trazer-nos suas luzes.
Luzes! Luz sem limite![6]
Pedro Figueiredo tem identificável linha estética e orientação plástica, não obstante o caminho que também tem consolidado ao nível da estatuária. Contudo, a insatisfação que caracteriza o seu inacabado impede-o de perseguir fórmulas. Está, antes, interessado em desafios que vão para além dos matéricos. Puros desenhos no espaço, as obras deste escultor, natural da Guarda mas residente em Coimbra (cidade onde, aliás, completou a sua formação académica), revelam-nos uma techne rigorosa, um saber fazer que se acompanha do saber pensar. Classicismo de execução, portanto, que soma a crueza do conceptualismo contemporâneo: são mulheres mitológicas, por um lado, e minimalismos existenciais sem género, por outro. Cada obra é uma letra do seu alfabeto de relatos de uma ontologia das imagens e de uma fenomenologia da imaginação[7]. Ultrapassam a escala dos comuns e dialogam com o espaço de exposição confundindo-se com os públicos: aquelas também são as nossas interseções de pensamento, aqueles também são os nossos jogos de tabuleiro, as nossas ideias, as nossas referências e as nossas superstições. Os seus devaneios são também os nossos, nesse eterno exercício de quem só está bem onde não está, como cantava António Variações (1944-1984). Inquietos e contemplativos. A Arte como exercício de catarse, combate à negritude da alma, resposta. A Arte como poesia dos dias, epílogo das horas felizes. Pedro Figueiredo é escultor. As suas esculturas são as voltas dos sonhos que se perfilam em cada um de nós. Atos comunicantes. Arte que, não sendo vida, vem da vida, respira os seus pérfidos e sedutores detalhes. Eterna dicotomia do bem e do mal, da felicidade e da hegemonia da solidão ou, terminando com Bachelard:
Que seria dos grandes sonhos da noite se não fossem sustentados,
nutridos, poetizados pelos lindos devaneios dos dias felizes?[8]
[1] ANDRADE, Carlos Drummond de – A Bolsa & a Vida (Crónicas 1). Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. Páginas 115 a 118.
[2] Citada em HAN, Byung-Chul – A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio D’Água, 2014. Página 28.
[3] HAN, Byung-Chul – A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio D’Água, 2014. Páginas 28 e 29.
[4] ANDRADE, Carlos Drummond de – A Bolsa & a Vida (Crónicas 1). Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. Páginas 115 a 118.
[5] Citado em HAN, Byung-Chul – A Sociedade da Transparência. Lisboa: Relógio D’Água, 2014. Página 33.
[6] BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Página 103.
[7] BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Página 202.
[8] BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Página 202.
Sobre a autora:
Curadora e Professora