Deveria ter pouco mais que oito metros de comprimento e dois de largura. Três metros de altura, mas com as estantes de livros e as pilhas acumuladas pelo caminho o sítio parecia mais pequeno. Quando se entra sozinho há uma determinada presença no cerne daquilo tudo. Os empregados, ou donos, não escutam maior parte dos clientes porque tomam-nos por turistas curiosos que manejam meia dúzia de livros e os empilham. Abrem brechas nas estantes, e se os tentam lá colocar novamente dobram as capas de cartão velho.
Naquela altura do dia não havia ninguém a passar na rua. A porta minúscula, sem letreiro não apelava a clientes. Talvez não fizessem falta. Quando se passa a entrada, subindo o pequeno degrau de pedra, cuja técnica obriga a um movimento oblíquo, dá-se de caras com cacaria velha e empoeirada. Estão para venda, mas parecem estar já há tanto tempo no mesmo lugar que se tomam por enfeites. Os livros estão todos do lado esquerdo, à exceção do último terço que tem dos dois lados.
Cada prateleira era constituída pelo menos por duas filas de livros, uma no interior e outra para o exterior. É difícil perceber que títulos estão escondidos quando temos que segurar com as duas mãos os exteriores inclinados para fora. É doloroso para os braços e para a paciência. Requer algum tempo a passar a pente-fino toda a livraria. Uma livraria comunista, ou pelo menos socialista, tendo em conta os títulos. Os livros eram adquiridos geralmente por recheios de casas. Maior parte das vezes de pessoas mortas. Não havia uma noção do valor de algumas coisas que ali estavam – marcavam preços aberrantemente baixos. Por cima de uma das pilhas de livros estava um cartão triste advertindo “compramos livros e recheios de casas”. Parecia um cemitério – onde as obras vêm morrer.
Claramente existia algum tipo de seleção. Percebi que certas coleções estavam sem determinados títulos. Títulos que não eram particularmente procurados, enquanto outros apareciam repetidamente. Com um pouco de cuidado consegui ir inclinando o máximo de livros possível até que afronto um pequeno e velho livro, já gasto pelo tempo e manuseamento “maina mendes”. Lombada vermelha, com o nome da autora a maiúsculas “MARIA VELHO DA COSTA”. Era ainda uma edição da Moraes. Antes de pegar nele torci interiormente para ser uma primeira edição. Já tinha um exemplar pelo qual paguei cerca de trinta e dois euros, uma edição da D. Quixote. Esta era uma segunda edição, a suposta capa branca estava tingida de amarelo gasto.
Na última página do livro marcava um euro e meio. Fiquei na dúvida se se trataria mesmo do preço ou se por algum acaso um dígito se tinha apagado. O empregado ou dono só apareceu ao fim de vinte minutos, a comer um rissol. Confirmou o preço. Um euro e meio. A felicidade daquele dia já estava na minha mochila. Segui para a esplanada de um café onde paguei mais por uma cerveja que por uma segunda edição de Novembro de 1977 de “maina mendes”, da qual apenas se fizeram 3000 exemplares.
Há dias em que vale a apena sair de casa, ainda que pachorrento e aos pontapés com os blocos da calçada. Descobrimos portas que podem guardar relíquias ao preço de cafés e cervejas. E isso basta-me para fazer valer o dia.
Sobre o autor
Licenciado em Filosofia (atual mestrando). Escritor, no sentido lato da palavra. Um apaixonado por boa literatura. Presente através do ig (@marcioluislima) e de becodapedrazul.wordpress.com. Toda a escrita tem por base o detalhe certo, daí sucede-se a vida.