Revista Rua

2023-11-14T23:03:52+00:00 Opinião

Negociar o fim da guerra?

Atualidade: Guerra Ucrânia-Rússia
Pedro Nascimento
21 Novembro, 2022
Negociar o fim da guerra?

A queda de um míssil em território polaco fez a Europa suster a respiração. Uma lembrança, principalmente para os mais distraídos, de que há uma guerra a decorrer. E não muito longe.

Por isso mesmo, ecoaram como nunca as vozes defensoras de imediatas negociações para colocar um ponto final no conflito. Será este o momento?

A invasão russa de 24 de Fevereiro de 2022, após oito anos de um “cessar-fogo” sequente à invasão da Crimeia, demonstrou definitivamente que Vladimir Putin não vai descansar até controlar a Ucrânia.

Mas a tenaz resistência ucraniana mostra que Zelensky e o seu povo não se renderão facilmente. Parece-me evidente que o conflito será uma constante enquanto o Putin governar o Kremlin. E quaisquer negociações não terão a virtuosidade de mudar esta realidade. Elas poderão apenas criar as condições a partir das quais Putin (ou um seu sucessor) contemplará a renovação do ataque à independência da Ucrânia.

Independentemente da concordância do leitor, antes de pressionarmos a Ucrânia para pedir a paz à Rússia, devemos examinar os termos que os ucranianos podem oferecer ao Kremlin, os perigos de tal oferta e, acima de tudo, a probabilidade de Putin os aceitar.

Percebemos que a Crimeia e parte do Donbass, já no controlo russo desde 2014, não eram suficientes para Putin. E a verdade é que dificilmente a Ucrânia conseguiria recuperar estes territórios. Mas Putin quis e quer mais. Agora tenhamos presente este facto: Putin depara-se actualmente com um custo de mais de 100.000 russos mortos e feridos e cerca de nove meses de devastação económica. Aliado a isto, ele garantiu quase exactamente o que tinha antes, ou seja, pouco mais do que a Crimeia e parte do Donbass. Definitivamente, Putin não salva a sua pele com um retorno a uma situação que, por insatisfatória, culminou numa nova invasão de territórios ucranianos. E as repetidas recusas do Kremlin em considerar negociações nesses termos são prova suficiente dessa conclusão.

Para o Kremlin justificar aceitar menos do que o seu objectivo de controlar a Ucrânia, os russos teriam que mostrar grandes ganhos, com uma porção de território ucraniano muito além daquele que controlam. E o preço para colocar os russos na mesa das negociações e com vontade de terminar o conflito é demasiado alto. Na perspectiva de Putin, oferecer-lhe um caminho que delimita os territórios ocupados numa configuração semelhante às actuais linhas da frente, não seria mais do que fazer pequenas mudanças na linguagem diplomática em torno do que ele já mostrou que está longe de ser suficiente.

Neste momento, poderá parecer conveniente a disponibilidade da Ucrânia para negociar a partir de uma posição de força, sobretudo após os reveses russos em Kherson. Contudo, esta opção baseia-se numa premissa errada. A Ucrânia libertou quase metade das terras que a Rússia ocupou desde o início da invasão de Fevereiro – o que significa que a Rússia ainda tem mais de metade do território que ocupa ilegalmente. A Ucrânia tem demonstrado uma enorme tenacidade, mas ainda não está em vantagem. E se a sua posição de negociação é agora mais forte do que antes, certo é que ainda não é suficientemente forte para criar boas condições para negociar.

Além disto, e na esteira do discurso do Kremlin, as negociações nesta fase do conflito não resultarão em concessões territoriais russas adicionais. Putin anunciou a anexação formal à Rússia de grandes áreas da Ucrânia que ele não controla. Ele pode concordar com um cessar- fogo, mas não concordará com um que implique a retirada voluntária de terras que ele reivindicou agora como parte da Rússia. Os reforços russos estão a caminho e o Ocidente está à porta de um inverno frio. Nesta fase da guerra, Putin espera que o clima quebre a vontade do Ocidente em continuar a apoiar a Ucrânia.

O mundo ocidental afirma, quase desde o início do conflito, que a Rússia vai perder esta guerra. Mas as acções de Putin mostram que ele ainda não acredita que perdeu esta guerra, que vai perdê-la, ou mesmo que não conseguirá conquistar mais territórios. Após as derrotas em Kharkiv e Kherson, os russos estão agora inclinados para uma ofensiva renovada no Oblast de Donetsk. E nestas condições, Putin não fará uma concessão que lhe pareça totalmente humilhante, voltando atrás com as suas anunciadas anexações ou retirando as suas tropas de áreas que actualmente controlam.

Um cessar-fogo, na melhor das hipóteses, congelaria as linhas da frente tal como estão. Seria agora vantajoso para os ucranianos?

Esta ponderação é extremamente importante, pois as forças de Putin ainda ocupam áreas estrategicamente vitais, mesmo após os sucessos da Ucrânia em Kherson. A Rússia ainda controla a central nuclear de Zaporizhzhia – a maior da Europa e uma importante fonte de energia ucraniana, bem como um perigo crescente para o meio ambiente nas mãos irresponsáveis dos russos. Controla também o centro vital de Melitopol, uma cidade que fica em linhas essenciais de comunicação da Rússia no Leste, ladeada pelo rio Dnipro a Oeste, pelo Oblast de Zaporizhzhia – controlado pelos ucranianos- a Norte, e pela Crimeia a Sul.

Se os russos conseguirem manter Melitopol, conseguirão transformar a cidade numa enorme base avançada para lançar futuras invasões, principalmente com o intuito de tomar as estratégicas cidades ucranianas de Zaporizhzhia e Dnipro e, possivelmente, cruzar o próprio Dnipro mais uma vez para colocar toda a Ucrânia em risco. As linhas actuais deixam quase toda a extração mineral e as indústrias de processamento da Ucrânia nas mãos da Rússia. Essas indústrias, concentradas no Leste em torno das cidades de Donetsk e Lugansk, representavam uma parte considerável da economia ucraniana antes da invasão de 2014. E a Ucrânia corre sérios riscos de tornar o país completamente dependente da ajuda da comunidade internacional a longo prazo. Estes não são meros territórios ucranianos. São áreas que a Ucrânia tem de reconquistar para sobreviver como um estado independente, pois enfrenta a ameaça constante de uma nova agressão russa.

E se a Ucrânia estivesse disposta a ceder esses territórios? Desenganem-se aqueles que vêem nas concessões ucranianas a única saída para o final da guerra. Mesmo desistindo destas terras, a guerra não chegaria ao fim. Putin não invadiu a Ucrânia para ganhar territórios. Putin invadiu a Ucrânia porque rejeita a ideia de um estado ucraniano independente ou de uma etnia ucraniana. Putin recusa-se a tolerar um governo em Kiev que não esteja sob efectivo controlo russo.

O Kremlin continuará a minar os governos ucranianos pró-ocidentais e a coagir os ucranianos a renunciar à sua independência. E a Ucrânia não conseguirá livrar-se dos ocupantes num ápice. Por isso, torna-se crucial manter as posições, ganhar tempo e conseguir engrossar a máquina de guerra ucraniana.

Ora, os defensores das negociações imediatas alegam que é isso mesmo que se deve fazer, congelar o conflito para negociar. Mas este não é o momento. Congelar o conflito com a actual configuração das linhas da frente só irá contribuir para antecipar uma futura invasão russa.

Negociações que culminem com a manutenção dos actuais territórios ocupados nas mãos dos russos condena ainda milhões de ucranianos aos esforços contínuos do Kremlin para a sua “russificação”. Para o rapto de crianças ucranianas e a adopção forçada em famílias russas. E para Putin continuar a sua campanha de limpeza étnica, procurando eliminar a identidade nacional ucraniana. Estes são motivos mais do que suficientes para a Ucrânia lutar. Uma luta pela sobrevivência.

“A melhor arma contra um inimigo é outro inimigo”, Nietzsche dixit.

___________________________________

Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.

Sobre o autor:

Advogado. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aficionado por música e desporto. Entusiasta de História Militar e autor da página WWII Stories Group.

Partilhar Artigo: