Não, não é um filme no Capitólio, nem uma revista do Parque Mayer, é a realidade de uma distopia concretizada na ala MAGA. Numa estreia programada e por alguns anunciada, o mundo viu concatenado terror e comédia em solo americano. A crítica estrangeira agradece a propaganda e a debandada esmorece o ritual da banda presidencial.
Onde estavas a 6 de janeiro de 2021? A data que se vai recordar. O dia de Reis, e como todos os outros de leis, em que fiéis ao presidente quiseram implementar particularidades monárquicas num país em que vitalícios são apenas os lugares no Supremo. Sim, o Supremo Tribunal de Justiça, aquele que em exercício da separação de poderes não diferiu um pedido não fundamentado.
Todavia, vale pouco a estrutura de uma acusação no cosmos da difamação e a sacralidade e previdência de um acórdão para aqueles que não acordam para a evidência. As ilusões que descredibilizam, de forma simplista, as instituições são uma realidade perigosa em qualquer vida em comunidade. Lastimam os pais fundadores pelos atos dos que não sabem encarar as diferenças entre um patriota e um idiota.
O carnaval de mascarados que não usam máscara, a não ser que esconda a sua face das forças policiais, por quem dizem dar a cara, começou com mais um grito de desespero do ainda líder, em mais uma inconsciência consciente. Os pobres rapazes de boné vermelho, de jacobice ao vento e de insurreição ao lado aproveitaram para soltar a sua natureza deboche, contra a Law and Order. A ironia da minoria que despreza as minorias é o cúmulo da hipocrisia em marcha.
As imagens não me saem da cabeça. O ignóbil sujeito de caveira ao peito, que certamente não sabe apontar Auschwitz no mapa e na história, o bárbaro tribal que pretende encarnar vândalos invasores e todos os restantes que retiraram documentos classificados e que faltam adjetivos para classificar. Foi assim a delapidação do coração de uma Nação.
As palavras viram sangue, que bonitas frases não coagulam. Os mesmos que proclamavam drenar o pântano são o pior do mesmo, são as piranhas afamadas e afaimadas com um instinto predador e de mau perdedor. Abandonando o figurativo e os figurantes desse espetáculo, recordo os tempos em que o exército brasileiro me mostrou o Pantanal, literalmente o maior pântano do mundo. Aprendi que, em certos rios, não podemos tombar e que estamos todos num barco em que piranhas não podem mesmo entrar.
A sessão é retomada na câmara dos representantes por quem viu o seu gabinete destruído e, no Senado, por um vice-presidente que anuncia o regresso ao trabalho e a derrota dos delinquentes. McConnell e Schumer, líderes da maioria e da minoria respetivamente, condenam igualmente o sucedido, antes de ser devolvido o palco ao Senador Republicano do Oklahoma, que tinha sido interrompido quando, ironicamente, queria procrastinar a confirmação da eleição.
As palavras e o tom de James Lankford mudam, criticando acerrimamente os “bandidos e desordeiros” e relembrando o básico do diálogo democrático. Recorre a um ator que não terá vivido o suficiente para ver um guião tão surreal. A “paz não é a ausência de conflito, é a habilidade de lidar com o conflito por meios pacíficos” é a citação de Reagan escolhida para tentar serenar uma pátria divida e endividada de ódio.
Não é o discurso de uma miss mundo, é o discurso de um mundo that we miss, em que anarquistas e déspotas não podem triunfar. Estes detratores do Estado de Direito não só conseguiram bonitas histórias no mundo virtual, adicionaram também à história do Capitólio um capítulo que não pode ser viral. Votar e contestar é um direito e respeitar a democracia nunca será um defeito, mesmo neste país desfeito, que não pode ser enterrado num vale de silicone. Honre-se as instituições que representam mais de 300 milhões!
Sobre o autor
Mestrando em Direito Internacional, na Faculdade de Direiro da Universidade de Lisboa, estudou também Direito Constitucional e Economia na Alemanha. Foi presidente da European Law Students’ Association – ELSA Portugal, em 2019/2020, e orador e moderador de diversas conferências, como a Law Summit, ELSA e TEDx. Recentemente, fundou Os 230, um projeto de literacia política.