Revista Rua

2022-09-20T11:14:17+01:00 Histórias

Chá no Reid’s: Uma questão de sensibilidade e bom senso

O Chá no Reid’s é sensibilidade e bom senso, é igualmente a alma madeirense.
Cláudia Paiva Silva20 Setembro, 2022
Chá no Reid’s: Uma questão de sensibilidade e bom senso
O Chá no Reid’s é sensibilidade e bom senso, é igualmente a alma madeirense.

No mundo das viagens e viajantes existem várias formas de conhecer novos ou velhos locais. O ímpeto de viajar implica, em primeiro lugar, a necessidade de nos ausentarmos do nosso local fixo, mas a viagem turística implica também a potencial ausência, um afastamento físico e mental do nosso lugar-comum. Viajar simplesmente pelo prazer de o fazer, conhecer, desconectar do dia a dia e deixar que o corpo flua em paisagens distintas.

Antigamente, embora não há muito atrás, a arte de viajar por lazer parecia estar somente restrita a uma classe social. De outra forma, viajar era uma forma de fugir à pobreza, tentar a sorte e fortuna noutras paragens. E entre uma primeira e uma terceira classe, muitos foram aqueles que atravessaram estreitos, mares e oceanos em busca de algo mais.

Foi exatamente esse espírito que terá cruzado William Reid, um jovem com apenas 14 anos, 5 libras no bolso, mas uma maturidade incrível, quando atracou na Madeira em 1836. Com a intuição e persuasão próprios, observando o constante vaivém de turistas e negociantes britânicos e norte-europeus, dedicou-se à hotelaria com o sonho de abrir um espaço de luxo numa das zonas mais belas do Funchal, num contraste entre as montanhas por fundo e a imponente escarpa rochosa de origem vulcânica, em primeiro plano. Foi só em 1891, já após a sua morte, que coube aos seus filhos, William e Alfred, inaugurar o pequeno hotel de apenas 28 quartos, frente ao mar, por onde aliás chegavam e entravam os visitantes.

Região dedicada ao turismo de saúde e bem estar, com trilhos de montanha, e levadas repletas de água, muitos foram os ilustres que passaram pelo então chamado “Reid’s New Hotel”, por forma não apenas a procurarem a recuperação física, mas também por puro ócio.

Com o avançar do tempo, no qual se incluem os principais conflitos bélicos mundiais que afetaram cruelmente o solo europeu e também as comunidades residentes nas ilhas portuguesas, o Reid’s viu-se na necessidade e circunstância de fechar, ser vendido, ser aumentado e reabrir (primeiramente pela mão da família Blandys, conhecida pela produção e comércio do Vinho da Madeira, e por último pelo Grupo Belmond, associado ao Orient Express Hotels). Estas alterações poderiam ter como principal consequência um decair na qualidade da missão, objetivo e rigor idealizados por William Reid, mas na verdade apenas traduziram o brilhantismo e inteligência necessários para uma evolução natural face ao mercado moderno e à procura por um luxo e requinte únicos que nunca perderam lugar.

Como tal, alguns detalhes mantêm-se criteriosamente iguais. A tradição bem britânica do Chá da Tarde, “Afternoon Tea”, é um desses pontos que ninguém deveria falhar numa viagem intemporal à capital regional.

A preceito, o ritual tem uma ordem específica de serviço iniciando-se, obviamente, pela escolha do chá ou infusão numa carta onde o maior problema recai claramente na escolha. Pequenos torrões de açúcar cristalizados surgem na mesa onde o serviço de loiça da Vista Alegre torna o momento numa mescla de sentimentos e culturas. Por um lado, o chá, de origem asiática, comercializado pelo Império Português, a partir de Macau para o mundo e levado por uma rainha portuguesa além-reino. Por outro, a presença e identificação nacional, através do pires, chávena e bule, tal como deve constar na etiqueta. Guardanapo no colo e entre o chá, saboreiam-se as pequenas sanduíches. Só depois entram os delicados exemplares de pastelaria e por último os scones que, segundo e regra, devem ser cortados na horizontal. Tudo é feito no hotel e tudo é delicioso. Claro que hoje em dia poderemos trocar alguma das ordens estabelecidas, não correndo o risco de parecer rude ou indelicado, mas qualquer pessoa que passe pela experiência de ser servido no Reid’s Hotel sente o peso de uma responsabilidade e etiqueta. Ninguém entra na varanda concedida para a ocasião e evento sem estar vestido com algum rigor e brio, e embora o momento já não seja acompanhado de música, não é raro ver os convidados a terem a mesma delicadeza como se regressássemos a tempos de outrora.

Tal como Andreas Augustin descreve no seu livro “I had Tea at Reid’s”, uma pessoa não bebe simplesmente o chá, mas antes, “toma e saboreia” calmamente o seu chá, o elemento principal desta viagem a um palco onde já passaram vários protagonistas. Também elemento de passagem de um ritual que atravessa os mesmos estreitos, mares e oceanos que lhe deram a fama. O Chá no Reid’s é sensibilidade e bom senso, é igualmente a alma madeirense.

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