“Deixai vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas”, Mateus 19:14.
Depois de séculos e séculos de relatos, como há pessoas surpreendidas com o relatório conhecido ontem, e comportamento do Clero?!
Tantos intelectuais e nunca leram o “Manhã submersa”, por exemplo. Ou “O crime do Padre Amaro”. Ou será que pensavam que aquilo era ficção?
“Fiquei sem fala, olhei Gaudêncio com terror. Porque tudo poderia entender: as faltas ao Regulamento, a familiaridade com o pecado e até mesmo o falar-se mal dos padres. Mas pôr em questão a existência de Deus parecia-me naturalmente um prodígio maior que o próprio Deus. (…) Se Deus não existisse… Não imaginava ainda então todas as consequências de um mundo despovoado da divindade. Mas sentia flagrantemente que toda a máquina complicada que me trabalhava a infância, e que Deus fiscalizava de olhar terrível, se arruinaria por si.”, Vergílio Ferreira
Ou será que aceitavam, porque o poder corrompe? Corrompe as almas, porque aceitamos os pecados de gente poderosa, mas ai do povo que erre!
E no meio de tanta coisa, ouço gente a falar de Direito Canónico. Para esses respondo com Mateus 18:5- 6 “Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está-me recebendo.
Mas, se alguém fizer cair no pecado um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar”.
Mas eu sou agnóstico, vivo numa República, acredito na separação de poderes. Logo exijo, enquanto cidadão, justiça nos tribunais civis. Para mim, o céu e o inferno são figuras de estilo, e não acredito que atirar alguém ao mar amarrado à mó de um moinho, sem ser ouvido, seja justo.
“O abuso acontecia em casa dos pais. O meu irmão era muito bonito. Eu estranhei e quando lá fui espreitar estava o meu irmão, coitadinho. Estava ele despido de calças e roupas de baixo e o padre, assim meio que no chão, a pôr o sexo dele na boca. Depois por trás a entrar nele. E ele aflito de lágrimas de chorar”. Este foi um dos relatos que o país conheceu ontem, contado por um familiar porque a vítima não conseguiu falar, não conseguiu expressar a brutalidade que foi alvo. E acredito que esta pessoa também teve dificuldade em colocar cá para fora tudo aquilo que presenciou.
Foi em lágrimas que ouvi isto. Raiva, vontade de mandar os padres para a puta que os pariu.
E ao ouvir todos estes relatos, trazidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, penso que não aprendemos nada com o caso da Casa Pia.
Não se deve legislar sobre casos concretos, é contraproducente, mas já se passaram 22 anos sobre o início do processo em que se conheceram, oficialmente, os abusos a centenas de miúdos pobres, que estavam à responsabilidade de uma das mais antigas instituições portuguesas.
Em Portugal é possível denunciar crimes sexuais contra crianças até cinco anos após a vítima menor atingir a maioridade, ou seja, até aos 23 anos de idade. Será uma janela temporal suficiente? Façamos um exercício: quantos de vocês relataram, num grupo restrito de pessoas, a primeira experiência sexual? Mesmo que tenha sido consentida e boa, há recato no seu relato porque isso altera significativamente a forma de ser, estar e pensar de qualquer ser humano.
Imaginem o que será relatar tal experiência quando, imagino, se quer apagar da memória a forma bruta, hedionda, sem respeito nenhum pela dignidade humana, com que se teve uma relação sexual; ou centenas delas. Quando é que se conseguirá expressar tal acontecimento? Porventura é necessária maturidade. Será que aos 23 anos é possível?
Quando Marcelo Rebelo de Sousa, há tempos, se referiu a apenas 500 casos, houve quem tivesse ficado indignado pela indiferença do Presidente da República. Seria indiferença ou seria a certeza que aquilo era apenas e só o começo? Porque aumentando a idade possível de se relatar às autoridades as atrocidades a que uma vítima foi sujeita, poderemos aumentar o número de casos que chegam a tribunal.
O Relatório da Comissão fala em 512 testemunhos validados, podendo-se extrapolar, por rede de contacto, para 4815 pessoas abusadas por padres, directores de instituições, pessoas ligadas ao escutismo. Daqui, apenas 25 casos chegaram às autoridades. No futuro, alterando-se a lei, poderão ser mais.
Por tudo isto, sinto vergonha e exijo, enquanto cidadão, que se faça justiça nos tribunais civis.
Justiça pelas vítimas e as suas famílias; não imagino o terror que será viver uma realidade destas. Quantos terão sucumbido moralmente, intelectualmente, fisicamente, ao longo dos tempos? O que terão feito para aliviar as suas dores?! É impossível imaginar.
Justiça pela Igreja e por Cristo. Como agnóstico, reconheço em Cristo um papel fundamental no humanismo da nossa sociedade e a Igreja sempre teve e terá um papel moralizador, de apoio aos mais desfavorecidos, no mundo inteiro, através das sua doutrina social. Haja coragem às pessoas que seguem Cristo, para que se revoltem e digam que não são todos iguais; porque eu acredito que há mais gente boa do que abusadores.
Justiça.
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Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.
Sobre o autor:
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