Ferozes, um livro de Helena Magalhães
Nunca se falou tanto em Feminismo como nos últimos anos. Movimentos como o #metoo vieram trazer a lume vários casos de assédio sexual e laboral no mundo da arte, cultura e espetáculo (e não só). Todo o glamour com o qual várias gerações, em Portugal inclusive, cresceram a ver de longe e depois de cada vez mais perto, de uma escala mundial a local, deu lugar a casos de violação, abuso de poder e misoginia, embora nunca querendo diminuir a dor refletida também nos testemunhos de vítimas (ou sobreviventes) masculinos.
Contudo, não deixa de ser óbvio que as mulheres continuam a ser, em número, vítimas “preferenciais” de vários eventos de segregação de género, até porque, em último caso, são vistas como loucas, perturbadas, exageradas e histéricas – algo que está inerente à sua génese e genética, uma vez que têm a capacidade de encarar quase todos os problemas de frente, dar à luz, cuidar de uma casa, da família e ainda serem excelentes profissionais – como tal, o seu grau de perturbação e deturpação de factos (quando dá jeito a certo tipo de homens e a algumas outras mulheres também) é facilmente justificável. Não saber ou conseguir dizer “Não!” é que já não se compreende tão bem.
Assim, em Ferozes, Helena Magalhães pretende, num registo autobiográfico, mostrar uma realidade nacional e atual onde não apenas as mulheres são vítimas de um sistema patriarcal intrínseco e ainda resultante de décadas de Ditadura, não obstante a publicação de várias outras obras feministas de várias autoras nacionais, ainda mesmo no pré-25 de Abril, como também mostra que podem ser vítimas de outras mulheres, que, por uma questão de sobrevivência num mundo de homens, tentam por tudo resistir e manterem-se à tona de água. Ferozes é, sem dúvida, um livro cru, escrito de forma muito direta e sem grandes (ou pequenos) subterfúgios. A verdade é que, se algumas mulheres ao longo da sua vida souberam lidar com os sinais, com os avisos e fazer frente face às situações de perigo e, como tal, serão certamente exemplos, outras vivem à sombra de si mesmas, sem nunca terem colocado sequer em questão a sua própria posição e qualidades enquanto membros reais da sociedade. Sobrevivem apenas a autênticos atentados à sua existência, sendo constante e continuamente analisadas, faladas e apontadas, independentemente das suas escolhas pessoais ou profissionais, em muitos casos pelos próprios parceiros/parceiras, familiares, vizinhos e, claro, em última instância, superiores hierárquicos que usam e abusam das suas posições em tom de ameaça e vingança.
Helena revela também um mundo onde a literatura feminina, os conceitos de beleza e as vendas de revistas e títulos são manipulados ao ponto de revelarem uma profunda falta de conhecimento e sensibilidade, tanto aos temas propostos, como aos assuntos de real relevância ao mundo da Mulher de hoje, caindo na sua perpétua ridicularização. Ao mesmo tempo vai presenteando o leitor com as estatísticas dos relatórios nacionais, e exemplos onde a justiça portuguesa falha gravemente nas suas decisões não apenas cegas, mas ainda pautadas por opiniões de caráter pessoal, onde reinam os juízos de valor e de moral e não os do Direito e da Lei.
Por isso tudo, e tal como escrito na página 13, “que sejamos ferozes”, ao que se acrescentará, que sejam ouvidas, respeitadas e que vivam sem o medo de serem realmente livres.