Mestra dos palcos e da televisão, Vera Holtz dispensa apresentações. Na peça agora em digressão por Portugal, FICÇÕES, protagoniza um monólogo, baseado na obra Sapiens. História breve da Humanidade do autor, professor e filósofo Yuval Noah Harari.
Escrito para os palcos de teatro em 2019, pelas mãos de Ricardo Portella, e em cena no Brasil desde setembro de 2022, FICÇÕES não pretende ser uma cópia do texto semifilosófico, mas pretende, contudo, colocar a plateia em cheque, obrigando o espetador a pensar.
Questões de consciência social, a hierarquização da sociedade, os tempos bíblicos, a segurança da estabilidade na “zona de conforto”, o desafio e apelo do desconhecido, as crenças, os preconceitos internos, pessoais, tudo são ficções. Do maior mérito humano, a nossa capacidade de sonhar, de inventar, de estabelecer regras, de querer ser mais, são características realmente nossas. Mas, ao mesmo tempo, podem e devem ser desconstruídas, ou questionadas. Não podem ser definições dogmáticas, com risco de nos tornarmos escravos delas mesmas. E será que não o somos já, numa cooperação coletiva global, onde o propósito tem apenas um fim?
Em hora e meia, a criação produzida por Alessandra Reis e Wesley Cardozo, e interpretada por Vera Holtz, à qual se junta o músico Federico Puppi (fundamental à narrativa) coloca questões que enchem a sala. Não há tempo para silêncios, mas sim para dúvidas, angústias e esperança, pela voz feminina (e não feminista) de uma narradora-intérprete de várias personagens. O ponto de vista de um feminino sagrado, que se desdobra em várias outras facetas da história da humanidade, desde a criação do universo, do conceito criado de “deuses”, da própria continuidade da espécie. Ela é o fóssil, ela é o cordeiro, ela é a espiga de trigo, que faz mover o Homem, mas também traz a guerra e coloca o dedo nas várias feridas.
Numa época como a atual, onde tudo é colocado em causa, dentro de movimentos sociais que, de forma errática e enganosa, são colocados em grupos ideológicos de fundo político, FICÇÕES não é, definitivamente, uma peça para todos. O simples facto de colocar em causa a fé mais básica que une setores populacionais, sejam de teor religioso, ou corporativo, pode ser tomado como uma afronta, algo “irritante”. Mais a mais se feito por uma mulher. Mais a mais se for feito por uma mulher madura.
A Revista Rua entrevista essa “Mulher”, que se representa a si, à Humanidade, e às coisas mais simples, e também o “Homem”, Federico Puppi, nos bastidores de um teatro, local onde a transição entre a realidade e a “ficção”, muitas vezes tem início. Uma “cooperação” essencial entre entrevistado e entrevistador.
Vera, como descrever a mulher narradora da peça? Qual o impacto e a dimensão social já sentidas desde a estreia no Brasil?
Vera Holtz (VH): A ideia foi da Alessandra. Não fazia aliás muito sentido, no mundo de hoje, ser um narrador masculino. Originalmente, o projeto foi pensado para um “Sapiens macho”. Mas com a entrada da Alessandra, começaram a procurar uma atriz com perfil para se fazer essa narradora, e o que eu acho interessante neste caso (e eu não sou uma atriz que levanta bandeiras, ou que defenda causas específicas), é que como esta obra coloca questões, quem tem de complementar o pensamento, é quem está assistindo. Então essa neutralidade da intérprete, da “Sapiens fêmea”, que tem uma preocupação mais universal, não defendendo situações, é o que eu acho de mais especial, estando o resto na mão do espetador. Contudo, todas as transformações de personagens, na peça, todo esse atrito, foi gerado pelo próprio Rodrigo, que se sentido tão confuso com a obra de Harari, tão revoltado, acaba por expressar esse sentimento em palco. As várias personagens exploradas, são o resultado também do que vai acontecendo no Brasil e o próprio Rodrigo também foi ajudado por um grupo de mulheres, jornalistas, diretoras de teatro, havendo sempre provocações femininas, podendo contaminar o autor.
Federico Puppi (FP): Não podemos esquecer que o início da narrativa ocorre antes de haver o conceito de Mulher, em termos sociais. Ela ainda não tem uma construção social, sendo uma “sapiens fêmea”. A Mulher vai-se construindo ao longo da peça até chegar a um discurso feminista, de facto, e aí sim, temos a estrutura consagrada. Mas a narradora inicial evoca factos anteriores até à própria sociedade, antes do conceito de mulher e homem.
VH e FP: Mulher e homem, são ficções.
VH: Macho e fêmea, são diferentes na componente biológica. Mas na narrativa, nas escolhas, são construídos, logo ficcionais. E o que é muito bom agora de estarmos a assistir, é que hoje está tudo misturado. Poder presenciar a transformação da narrativa entre ambos, é genial.
Numa época, como a qual estamos a viver, a experienciar, como se assiste às mudanças que atravessamos social e politicamente? De que forma este texto pode influenciar o público, ou pretende sequer ser um meio influenciador?
VH: Se tudo é ficção, porque é que não podemos recriar? Novas crenças e novas criações? A narrativa, de alguma forma, está ultrapassada. Então a peça serve exatamente para fazer mudar o pensamento, construindo por cima do que está feito, outras formas de pensamento.
FP: Citando o ex-Presidente do Paraguai, “Nós estamos a viver uma das maiores revoluções da Humanidade, só que ela não está direcionada ao bem-estar da sociedade”. A nossa época política e tecnológica é extraordinária, mas são completamente desreguladas e não são feitas para o interesse real da nossa espécie, mas sim de alguns poucos. Não se tenta salvaguardar o ambiente, o social.
A peça estará em cena e digressão em plena época de campanha eleitoral e período de eleições em Portugal. Acha que faz sentido afirmar que a política é, também ela, uma ilusão, uma “ficção”?
VH: Mais ainda, com certeza. Essa capacidade é genial. Como a personagem “deus” fala no final da peça: “Você pode fugir da ficção do teatro, das discussões, das crenças, posso até pode fugir desta ficção, porque o lugar do teatro é o lugar do imaginário”. Mas quando abrir a porta, todas as narrativas prévias e construídas, vão avançar para cima de você de uma forma absurda. Embora o ser humano tenha uma capacidade enorme de adaptar à realidade, em prol da tal “cooperação”, sabemos que a linha condutora tem interesses bem particulares. E isso ocorre no Brasil, em que temos hoje uma mistura de pensamentos, mas o mesmo parece ocorrer aqui (Portugal) com uma mudança de ordem. Mas assim é. Tem de existir um equilíbrio, é uma lei da física. A balança, se tomba para um lado, por muito tempo, tem de se equilibrar. Estamos a viver isso na História, que sabemos que se repete.
FICÇÕES é um exercício de palco exigente, também interativo com a plateia. Como tem sentido a resposta do espectador, sabendo que os temas abordados ainda podem ser considerados como pequenas provocações a quem assiste à peça?
Aqui em Portugal, o público é mais resistente do que no Brasil. Lá todos querem participar, entrar em festa. Aqui, há reação, sim, mas só depois de perceberem que podem estar de forma mais relaxada. Que é um jogo, que podem ou não levantar, sentar, responder às questões colocadas.
No Brasil existem respostas completamente diferentes, em cada estado, em cada cidade, por via de cada tipo de público, mais festivo, mais cultural. Cá, sinto que é algo como se fosse uma descoberta. À medida que a peça vai avançando, eu fico preocupada sem saber se as pessoas vão percebendo o que eu vou falando, porque algumas perguntas podem não resultar e outras sim. E aí o próprio público vem ter connosco, após o espetáculo, e nos explicam que algumas pautas, alguns temas, em Portugal, não fazem sentido, outras vão mexendo muito. E há quem nos diga que terão de pensar bem no que acabaram de ver e ouvir. Outros que regressam uma segunda vez, para completarem esse entendimento do pensamento, que não tinham conseguido na primeira volta. Mas alguém quer mesmo colocar em causa um sistema de crenças? Sair deste lugar? Da zona de conforto?
FP: A nossa peça pede mesmo isso, um convite a sair da zona de conforto, desconstruir as crenças que estão bem enraizadas.
VH: O nosso impacto é, geralmente, muito positivo. Muitas vezes emocional demais, com pessoas que saíam chorando, porque nunca se tinham visto como parte de “um rebanho”, nunca tinham feito aquelas perguntas a elas próprias. E muitas até nem percebem que estão sendo induzidas a fazerem determinadas coisas, em prol da tal “cooperação”, cujo fim, nem sequer sabemos qual é. Por outro lado, também pensavam que eram muito independentes, que decidiam por si mesmas, e na hora, é outra coisa.
FP: Nós também conseguimos ver as reações físicas da plateia, quando são levantados determinados assuntos, as movimentações físicas mudam, alteram. Mas por exemplo, aqui, as pautas sociais, como não são tão debatidas como no Brasil, têm um peso mais forte, porque ninguém está preparado para lidar com aquele assunto. Aqui, dá-me ideia que é ainda uma surpresa.
VH: Mas a verdade é que somos todos iguais, então questões como raça, como superioridade, é tudo ficção, é tudo uma narrativa, mais uma vez, construída pelo negativo, que é alimentado e que tem de ser superado. Estamos numa época incrível de criar ficções em cima de ficções, com as “fake news” e é preciso saber interpretar.
E o Amor? Será o Amor uma ficção?
VH: É um processo químico, certo? (risos) Na verdade, no filme Interstellar, há lá uma frase de uma personagem que diz tudo. “O Amor é algo que não conseguimos inventar, tem de ter um significado e transcende as dimensões de Tempo e de Espaço”.
Já tendo passado por Lisboa, no Teatro Tivoli BBVA, FICÇÕES segue em digressão para o Porto, no Teatro Sá da Bandeira, entre 7 a 17 março. Seguem-se Póvoa de Varzim, Figueira da Foz, Vila Real, Leiria e Famalicão.