O homem pegou em cinco moedas, chamou o mendigo estalando os dedos e atirou-lhas para o chão, sem largar o cigarro ou sequer olhá-lo como gente, dizendo
– Tens aí que te chegue para a semana toda e o mendigo, agachado, sorrindo ainda de volta
– Chega para o tempo que o senhor quiser, o senhor é que manda
depois o homem cuspiu a beata com o indicador e desapareceu para dentro da tasca, esfregando os dedos e para trás da porta gente, vozes, gestos inacabados, mãos conversadoras, luzes opacas, os cães do mendigo a vaguear pela praça e o dono quieto, sorridente, espiando as moeditas na mão, cêntimos, não daria para cinco pães, as marcas das agulhas no braço, olhos de criança perdida há muitos anos dentro de um homem que com toda a certeza só pensa reconhecer quando se relembra pequeno correndo atrás de uma mãe ou de um pai, talvez de ambos, talvez uma aldeia distante da qual até o nome se vai esfumando, há quem chegue já se despedindo, só cinco dedos a acenar com as costas da mão, pedindo licença às pedras da calçada para as pisar, exclamando,
– Desculpem que eu exista
(o mendigo a dizer de si para consigo)
a pele vincada, mãos tecidas em veias, de súbito um sorriso e uma inclinação do rosto, a vida é tão bela e nós puxamos um fio de felicidade dos poços mais fundos, o que é que nos pertence neste mundo? nem as feições nos obedecem, funcionam na natureza própria do que não se explica, agem a contragosto, somos criaturas tão estranhas e, no entanto, viver parece tão simples, podia alongar tudo isto, explicar que esta cidade tem nela dois mundos, o visível e o outro que se nos atravessa na garganta, fui-me embora na minha pequeneza perante um homem muito maior do que eu, gigante e pensei que há alturas em que viver custa a engolir.
Nota: Este artigo não foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.
Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.