Milhares de peregrinos caminham para Santiago em ano Jacobeu
Um santo sepultado em Compostela revelou-se pelos sonhos a um eremita. Afonso II testemunhou as ossadas, e ordenou a construção de uma capela. Afonso III promoveu o santuário a rota de fé. Celestino desenhou a primeira seta a indicar o Caminho Português, impulsionando-o para os 130 mil peregrinos em ano Jacobeu.
Romeiros provenientes desde todos os cantos do cristianismo – espanhóis, italianos, polacos, ucranianos, alemães, sul e norte americanos – entregam-se à peregrinação a pé, a bicicleta ou a cavalo para viajarem até ao quilómetro “zero”, assinalado nas pedras da Praça do Obradoiro à porta da catedral em Santiago de Compostela.
Brigitte Lobisde, 74 anos, caminha acompanhada pelos três netos a rota portuguesa. Anos passados, o caminho principiou-se “à porta de casa” em Munique, quando se reformou. “É preciso estar no mundo, para ver o mundo” e Brigitte frequenta-o regularmente, nunca se dispensando a uma peregrinação anual: “Via da Prata, Caminho do Norte, São Salvador, Inglês ou Português a partir de Fátima”.
Múltiplas vias, despovoadas ou gentrificadas, guiam os devotos até às ossadas de Santiago Mayor – um dos 12 apóstolos de Cristo. E, Brigitte percorre-as desde os anos 90. Os netos apreenderam o exemplo da avó. Juviau, o mais velho, começou a trilhar aos seis. Amélie aos cinco perguntou-lhe como era ser-se peregrina. “Uma aventura diária pela qual devíamos ser gratos”. A definição soa à bem-aventurança do cristianismo. “Só se caminha a um ritmo humano”, esclarece Brigitte, acostumada a trilhar desde os anos 90, sem demonstrar receio pela alcunha – “parte pernas” – que os peregrinos impuseram ao Caminho Português da costa.
São milhares de quilómetros em cada perna, uma mochila, dois bastões e a companhia dos três netos. “Quero que entrem comigo em Santiago pelo menos uma vez”, desabafa, que os 74 anos já se revelam um desafio. As arfadas pausam a entrevista. “Sinto-me totalmente livre e aos meninos explico-lhes que devem tomar conta deste mundo”.
“Não sou muito religiosa”, diz a alemã, que os aventureiros são mais do que os padres a caminho para Santiago. Brigitte hospeda-se nos alojamentos privados por causa dos netos, pois os albergues públicos não aceitam reservas e só acomodam peregrinos pela ordem de chegada. As mochilas alinham-se à porta do albergue, para que os caminhantes reservem as suas camas antes que o alberguista abra a receção. Os dormitórios municipais custam menos do que dez euros por noite. Por vezes o cheiro é intenso. As mochilas só carregam o essencial: três mudas de roupas.
As botas permanecem no exterior e os albergues encerram à noite. António Devesa, 52 anos, prolonga o horário de encerramento. Peregrino experiente, ex-presidente do Espaço Jacobeu em Portugal, voluntário durante o verão no alojamento municipal de Pontevedra. Irrita-se, com “a quantidade de turistas disfarçados de peregrinos”. “O caminho está a abarrotar”, afirma Devesa, que sentiu o poder transformador da peregrinação. “O caminho primitivo limpou-me tudo”, refere-se aqueles pesos imateriais que não cabem na mochila. “A vida melhorou, aproximando-a Deus, encontrei a paz, o equilíbrio e a felicidade”, afirma.
António Devesa percorreu todas as rotas convencionais para Compostela. Insaciado sacrifica-se pelas vias de Cristo: “Gosto de caminhar em Itália”. A austeridade e a autossuficiência como libertação para as vicissitudes da rotina. Cerca de uma centena de peregrinos cabem no albergue municipal de Pontevedra. Devesa solicita a credencial a cada um deles, para se certificar que os quilómetros são percorridos a pé, sobre duas rodas ou a trote. Caso haja demasiada gente para se hospedar, António opta pelo bem-estar dos caminhantes e encaminha os ciclistas para um gimnodesportivo.
“Não há caminho sem ilusão”, desabafa Celestino Lores, 71 anos, quem desenhou a primeira seta amarela que indica o rumo para Santiago em frente à catedral de Tui. “Após ter desbravado o Caminho Francês há 30 anos”, relembra-se. Hoje, apresenta-se como presidente da Fundação Caminho Português e ex-vereador da cultura na província de Pontevedra. O rei Juan Carlos condecorou-o pelo serviço que prestou à Galiza como “recuperador oficial do Caminho Português”. Só a covid-19 e a guerra civil espanhola suspenderam a peregrinação. Em 2021 a arquidiocese de Compostela prolongou o ano santo para 2022. “Esperamos acolher 130 mil pessoas neste ano”, conta Celestino.
1200 anos desde o primeiro peregrino. A gentrificação tornou-se uma das características do Caminho Português. Don Celestino é culpado e abençoado. “Cem mil peregrinos dormiram no albergue municipal de Pontevedra em 2019, quando um crescimento de 10 mil caminhantes se constava a cada ano”, afirma Lores. Muitíssimos postos de trabalho e negócios familiares são alimentados pelo fluxo permanente de caminhantes. “A partir de 1999 construíram-se os albergues municipais e os caminhos foram limpos”, recorda-se Celestino, no entanto, que a rota portuguesa tardou a se desenvolver: “A Sé do Porto ainda se recusava a carimbar as credenciais no princípio do século”. Uma seta surge no aeroporto Sá Carneiro para indicar o norte até Santiago como símbolo da vertente comercial exponenciada nas últimas décadas.
Celestino enaltece a componente espiritual da peregrinação e os 1200 anos de história. “A Rainha Portuguesa Santa Isabel caminhou até Santiago e as mochilas prosseguem carregadas de esperança. Cada um faz a sua reflexão”, acrescenta. Os 12 séculos são narrados entre lendas e factos. Desde o misticismo à pedra. Desde o convento medieval em Santa Maria de Oya até à batalha naval em Ponte Sampaio. Desde o tráfico de cocaína nos anos 90 pela Ria de Arousa até aos lagosteiros em pedra que avançam sobre o mar de Baiona.
Vários são os ícones culturais na rota portuguesa. E cruzam-se escarpas, falésias, cocurutos de montanhas como se fossem planícies lunares, bosques de pinheiros-mansos e eucaliptos, povoados galegos e cidades em pedra. Até à Compostela escrita em latim, sendo um documento oficial atestado pela oficina do peregrino em Santiago, e trocada pela credencial, onde os peregrinos colhem os carimbos dos estabelecimentos de passagem como comprovativo para os quilómetros percorridos. Os padres lavam os pés aos peregrinos e os mais devotos escutam uma ovação a seu nome na eucaristia da catedral.