Revista Rua

2024-12-18T01:30:56+00:00 Cultura, Literatura, Radar

Morro da Pena Ventosa: Do Porto com Amor pela cidade a desaparecer, por Rui Couceiro

Falamos com o autor para desvendar mais um pouco deste livro que conta a história de um novo Porto.
Rui Couceiro ©Neusa Ayres
Cláudia Paiva Silva18 Dezembro, 2024

Morro da Pena Ventosa: Do Porto com Amor pela cidade a desaparecer, por Rui Couceiro

Falamos com o autor para desvendar mais um pouco deste livro que conta a história de um novo Porto.

Eu sabia que, não fosse a forma como havia sido construída, a cidade do Porto seria solar. Mas como a zona mais antiga da cidade tinha sido pensada e erguida para ninguém entrar nela, e assim se manter, como até hoje, invicta, também era em grande medida à prova de sol, o que pode parecer um pouco inadequado enquanto lugar para se viver, mas era em absoluto necessário para se sobreviver…”

 

Luísa Fragata e Elisabeta poderiam ser irmãs. Unha com carne e amigas de uma infância, onde Elisabeta, ou Beta, era a mais reservada, escondendo-se atrás de uma timidez em resultado de uma educação tradicional, mas não menos mundana, e Luísa era a destemida, a aventureira, sem medo de agir e, muito menos, de falar.

Anos passaram, mas quis a vida que ambas se reencontrassem através da escrita. A qual, na verdade, foi sempre o maior vínculo, a ligação e o fio condutor, onde a realidade se misturava com a ficção e, mais importante, com a imaginação.

Hoje, Beta volta a precisar da amiga para contar a história do desaparecimento de um Porto que já não é dos portuenses, como Lisboa parece não pertencer aos lisboetas. Um Porto que nem parece já ser dos bairros antigos, tão típicos e tão escuros, quanto o granito os poderia tornar, como que os protegendo de uma força maior, imperativa, mas que acaba por se apoderar da cidade.

A crescente gentrificação, o flagelo dos alojamentos locais, o encerramento de lojas históricas, a mudança que o turismo vem obrigatoriamente provocar são alguns dos temas em Morro da Pena Ventosa, da autoria de Rui Couceiro. Contudo, é a personagem feminina que deambula entre as recordações de uma infância dura, mas pautada por amor de uma avó que foi mãe e pai, e de uma outra escola (a da vida), que para Beta fez todo o sentido.

Ainda assim, algo mais irá surpreender a narradora, as personagens que no livro são descritas. Algo inexplicável, algo que talvez nem faça parte deste jogo de luz e sombras com que Beta sempre viveu. De qualquer realidade, sequer, conhecida.

“Desfiguradas, ao fundo, tentavam compor o cenário de rochas graníticas, de tom quase alaranjado, em erupção por entre a areia das dunas, como magma ardente, e o passadiço desenhando um horizonte paralelo ao traçado pelo ilusório fim do mar. Os elementos mostravam-se, mas eu sentia-me segura.”

Entre apresentações do livro, e novas edições (Rui Couceiro é, além de escritor, editor), a Revista Rua falou com o autor para desvendar mais um pouco deste livro que conta a história de um novo Porto.

Uma carta de amor ao Porto. Há quanto tempo andava esta ideia a “rondar”? Houve algum momento ou situação que desencadeou ou foi algo que era simplesmente “necessário”?

As primeiras imagens e ideias para este romance surgiram ainda antes de eu terminar o anterior. Na altura, anotei-as e guardei-as, para que não se sobrepusessem ao que estava a escrever, mas elas continuaram a crescer, como uma árvore que é cortada, mas teima e rebentar, e o facto é que, pouco depois, acabei por lhes agradecer a resistência e a vontade de viver, porque me foram muito úteis. Nessa altura, comecei a viver um momento de hesitação quanto à forma de concluir o livro em que estava a trabalhar, não conseguia avançar, e então aceitei o chamado e pus-me a escrever este romance do Porto. Digamos que o Porto apareceu no momento certo e desbloqueou o Alentejo, porque logo depois consegui terminar o outro livro.

Gentrificação e turismo – um tema totalmente aberto no livro, com mágoa, mas sem ferida. Como pensa, enquanto cidadão, sobre este problema? É ou será um mal necessário este crescimento turístico? Ao mesmo tempo, qual o preço a pagar pelo desaparecimento do tradicional e típico? 

O assunto não é simples e mereceria uma conversa inteira. Mas o que sinto é que o turismo faz sentido, se controlado. E, numa cidade como o Porto, ainda mais, dado que se a esvaziarmos de portuenses, à conta da pressão imobiliária, estaremos a retirar-lhe aquilo que de melhor ela tem para oferecer aos próprios turistas: a sua identidade, uma cultura própria que vale mais, a meu ver, do que o magnífico património edificado que temos para mostrar. Qual será o interesse de, daqui a uns anos, se visitar um Porto sem portuenses? A cidade ainda tem milhares de edifícios devolutos, que devem ser reabilitados para que neles more gente. Essa gente gerará cultura e esse será o melhor produto que teremos para mostrar e vender aos visitantes que cá virão deixar-nos o seu dinheiro, com todo o entusiasmo, porque se sentirão bem tratados, dado que os portuenses vivem de abraços abertos.

Alterações climáticas, rios que secam, geopolíticas ambientais. Teremos futuramente algum livro mais “virado” a estas temáticas? Terá sido este Morro da Pena Ventosa apenas um novo preâmbulo para outra história completamente viciante, extremamente bem escrita, sobre temas sociais e ambientais que tanto nos irão dizer neste futuro que parece tão incerto? 

Honestamente, eu não sou um ecologista. Mas consumo informação, percebo o que se passa à minha volta e seria tolo se não tivesse preocupações relacionadas com esse domínio. Por outro lado, enquanto autor, não só gosto que os meus livros espelhem essas preocupações que tenho enquanto cidadão, como também, e sobretudo, sinto que o meu papel é mostrar o meu tempo. E estas duas convicções têm-me levado a abordar, para lá dos temas clássicos da literatura, como o amor ou a morte, temas como a desertificação do interior, o abandono e a solidão a que são votados os mais velhos, o turismo de massas, a gentrificação, as alterações climáticas, etc.

Qual é o verdadeiro “Poder” da nossa mente? Quem leu o livro, percebe que afinal nem tudo o que parece é – estamos tão sozinhos assim para criar outras realidades? 

Acho que essa visão faz sentido. Nas cidades, vive-se uma espécie de alienação, que é consequência de uma solidão estranha, porque acontece no meio de milhares de pessoas. No caso concreto da Beta, a protagonista de Morro da Pena Ventosa, a razão não é tanto essa, parece-me, mas o facto de ela ter sido sovada pela vida. É uma jovem mulher que sofreu muito sem nenhuma culpa e que encontrou os seus próprios mecanismos de defesa. Um deles é essa ferramenta poderosa que a vida nos dá e a que chamamos imaginação, a possibilidade de criar outras vidas e outros mundos dentro dos que habitamos. E este livro, por via dessa circunstância da protagonista, mas também de um acontecimento que afeta toda a cidade, pretende ser uma homenagem à imaginação.

Partilhar Artigo: