
O Desencanto, de Beatriz Serrano, lê-se num único fôlego
Primeiro alerta, em forma de spoiler ou “vermelho”: nunca tentem drogar os vossos colegas de trabalho, por muito fartos que estejam deles. Ou do vosso trabalho. Tanto faz.
Segundo alerta: nunca desejem que algo vos aconteça a caminho do local de trabalho. O universo não dorme.
Com estes dois conselhos, damos o pontapé de saída para O Desencanto. Algo que, quase de certeza, todos já teremos sentido na vida. Uma sensação de perda, de cansaço e desvalorização profissional. O dia a dia que parece repetir-se, monótono e sem iniciativa. Ou apenas o fazer autómato, a sobrevivência a mais um dia de escritório, onde pessoas que não são nossas amigas, fingem ser nossas amigas, mas, no dia em que falhamos, em que não estamos, somos apenas mais um número a ser preenchido.
Nos dias que correm, literalmente, apressados, com horários bem definidos, refeições preparadas para a semana, reuniões, escolas e creches, trânsito infernal ou transportes sobrelotados, este livro, de forma curiosa, é uma lufada de ar fresco. Uma forma de repensar a nossa vida, laboral, claro, profissional, também, pessoal, sem dúvida.
Entre dicas de marketing, ou como se fazerem apresentações em powerpoint (válidas para qualquer área de trabalho), também nos obriga a refletir sobre o papel que se espera de nós enquanto humanos, animais sociais, ou apenas bons profissionais, quais cordeiros que têm de responder a uma série de demandas necessárias para colocar uma empresa em funcionamento. Será que vale tudo? E qual o lugar da mulher no meio desta hierarquia – não sendo um livro feminista, seria impossível à autora, Beatriz Serrano, espanhola e madrilena, não perguntar se o papel da mulher está taco a taco com o do homem, no espetro empresarial e, no mesmo sentido, como as mulheres se veem umas às outras. Existe realmente essa irmandade feminina?
De algumas passagens de O Desencanto destacam-se parágrafos que nos fazem todo o sentido: “…mas essa canção falava de outra coisa: falava do desassossego da classe trabalhadora, da infelicidade constante apesar de se cumprir as expectativas, de se fazer o que é suposto fazer e, contudo, nunca ter uma sensação de plenitude. Morrissey cantava sobre a insatisfação que os trabalhos provocam e a obrigação de pagar faturas, sobre a alienação que as horas no escritório causam e o pouco tempo para desfrutar dos verdadeiros prazeres da vida.”
Desenganem-se aqueles que continuam a acreditar que o verdadeiro valor de um profissional apenas é medido pelo número de horas que se passa nos gabinetes, nas diferentes ideias que possam apresentar (mesmo que nenhuma siga em frente, embora sirva para a sensação de “aquela pessoa é realmente interessada”), naquilo que são capazes de abdicar, desde férias, festas da escola dos filhos, tomarem conta de familiares, ou simplesmente, cumprirem o seu verdadeiro horário de trabalho. Desenganem-se aqueles que acham que O Desencanto é um livro para e das novas gerações, que não estão dispostas a trabalhar. Estão, estamos. Independentemente da nossa idade. Apenas queremos momentos de pausa, valorização, salários dignos, sem assédio laboral ou psicológico, o “tradicional” “de bestial a besta” em menos de 1 segundo, sem ameaças de despedimento, sem recibos verdes, falsos, e durante anos. Por mais idas, como a personagem Marisa faz, aos museus da nossa cidade, às refeições em pequenos luxos que nos podemos (alguns) ainda ter: “Se Proust conseguia evadir-se e recordar a sua infância graças ao sabor de um queque ensopado na sua pequena chávena de chá, eu não deverei ter problemas em transportar-me para esta noite quando enfiar uma anchova na boca.” Pela nossa, pela vossa saúde mental – façam o que gostem, mesmo que outros possam não gostar. Mas lembrem-se dos alertas iniciais: nunca droguem os vossos colegas e nunca desejem que nada nos aconteça entre a vossa casa e o vosso local de trabalho.