Revista Rua

2023-11-14T23:18:33+00:00 Opinião

O dia mais longo

História
Pedro Nascimento
14 Junho, 2020
O dia mais longo

Há acontecimentos que guardam um lugar muito especial na História. Que são muito mais do que um ponto de orientação temporal ou um mero elo de ligação cronológica. De onde sobressai um elemento muito peculiar da disciplina: a importância de determinados eventos catapulta-os para a eternidade.

Pode a maior parte das pessoas desconhecer o Édito de Caracala, que consubstanciou a maior concessão de cidadania da História, quando o Imperador a concedeu a mais de 20 milhões de pessoas. Mas a morte de Júlio César às mãos de conspiradores romanos é sobejamente conhecida; A Batalha de Cananor (1506), onde as forças Lourenço de Almeida enfrentaram e venceram uma frota com mais de 200 embarcações de várias nações ao largo da Índia, permanece ignorada, mesmo nos livros da História de Portugal. Mas Fernão de Magalhães, que nela participou e ficou ferido, ficará para sempre recordado pela primeira viagem de circum-navegação do globo (apesar de ter falecido antes de a finalizar).

No mesmo sentido, quando falamos sobre a Segunda Guerra Mundial, há uma panóplia de eventos que é totalmente desconhecida, até mesmo para os mais interessados. Mas há um evento que se tornou incontornavelmente célebre: o Dia D. Este é o momento que a maior parte das pessoas identifica como o mais marcante do conflito. Os relatos e as imagens da aproximação das lanchas de desembarque às praias, a tenacidade dos defensores nos seus bunkers e a carnificina que daí resultou forneceram uma ideia muito mais consolidada sobre o que é uma invasão.

Utah, Omaha, Gold, Juno e Sword. Cinco praias, cinco nomes de código. Ao contrário do que os alemães esperavam, a invasão não se deu pela travessia mais próxima entre a Inglaterra e a França ocupada pelos nazis (Dover – Pas da Calais), mas na Normandia. No dia 6 de Junho de 1944, mais de 160 mil soldados atravessaram o Canal da Mancha, naquele que seria “o dia mais longo”. As forças americanas tinham a tarefa de tomar Utah e Omaha, ficando Gold, Juno e Sword a cargo das forças britânicas e canadianas. Todas as forças foram auxiliadas por soldados de outras nacionalidades, como polacos, dinamarqueses, holandeses e muitos outros.

De todos os teatros da Segunda Guerra Mundial que visitei, este foi indubitavelmente o mais emblemático. Nas ruas da Normandia jaz uma paz em tons lúgubres. No percurso entre Sainte- Mère-Église (a primeira localidade francesa libertada pelos Aliados) e Ouistreham (Sword Beach, a praia mais a leste), contemplamos cerca de 100 kms coloridos por bandeiras das nações que participaram nos desembarques, museus e memoriais despidos de gente, cemitérios e locais onde a coragem e o sacrifício de jovens soldados foram eternizados em lajes sepulcrais. As ruas, cobertas pelas sebes impenetráveis do bocage, contam histórias daqueles dias, onde em cada esquina encontramos uma recordação de alguém que deixou o conforto do seu lar e o amor da sua família para nunca mais voltar.

Há um valor inestimável em pisarmos estes locais. A História conhece-se pelos livros, pelos relatos, pelos filmes. Mas sente-se no terreno. Mais de três quartos de século depois, visitar a costa da Normandia é um regresso ao passado. A ausência de construção moderna, aliada a uma preservação extremamente cuidada dos locais onde ocorreram os eventos da batalha remetem-nos para aquele tempo. E são um estímulo, quer para quem se aventura como historiador, quer para quem apenas tenta imaginar o que seria estar num cenário daquela magnitude.

O Dia D é um daqueles acontecimentos que nunca cairá no esquecimento. Ficará para sempre na memória dos mais interessados e dos mais desatentos. E é bom que fique para sempre, pois devemos também tê-lo em conta como um exemplo. O exemplo sobre o que poderia ter acontecido se este extraordinário empreendimento tivesse falhado. Teriam os nazis vencido a guerra? Ainda que a resposta fosse negativa, levantar-se-ia a séria hipótese de o Exército Vermelho chegar não apenas ao rio Reno… mas até à costa atlântica. A História da Europa seria muito diferente. A nossa História seria muito diferente.

Nota: Este artigo não foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.

Sobre o autor

Advogado. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aficionado por música e desporto. Entusiasta de História Militar e autor da página WWII Stories.

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