Revista Rua

2020-08-24T10:04:11+01:00 Opinião

O fosso documental da influência

Crónica
Márcio Luís Lima
24 Agosto, 2020
O fosso documental da influência

O consumo do documentário, que visava a uma determinada informação, tornou-se antes um adorno estético que visa a apreciação de consumo rápido – sob a forma de série ou filme de “blockbuster” camuflado por um grande alarido estridente. A necessidade documental transpareceu dos grandes ecrãs para os mais pequenos e por ventura para as “telas de luz azul”.

A afluência dos influencers deu à costa uma nova onda de documentários amadores sem conteúdo que lhes valha na maior parte das vezes, isto porque usam de maneira errada o seu potencial.

O afastamento das redes sociais, que muitos de nós já sentimos vontade, desde a desinstalação dos aplicativos, até à desintoxicação evitando dias a fio sem as abrir, não é novidade nenhuma. Note-se é que já não se trata apenas da toxicidade (que pretendo abordar noutra crónica), mas também de uma banalidade da “boa vida”. O lifestyle que é constantemente vendido na frente das câmaras e que desvela uma vida em tom cinematográfico que não segue guião, parece já permanecer dentro de uma lente da realidade ligada vinte e quatro horas.

Há um certo desligamento da emoção humana para forjar o social. Por exemplo, os próprios animais domésticos (e nalguns casos até os selvagens) já se tornaram “vítimas” deste embuste e fixação alienada desprovida de emoção – ou antes emoção barata. Existem uns quantos perfis de instagram para “modelos” animais, onde estes são fotografados e documentados como estrelas de cinema.

Vejamos alguns dos recursos do documentário e comparemos à habitual rotina das redes sociais: a presença de um locutor – nas redes sociais está associado ao dono do perfil que descreve os seus planos ou acontecimentos, geralmente associados a uns quantos “chavões”, com tiques típicos e colocando a voz sempre no mesmo timbre; a construção do documentário com depoimentos, contando uma história por meio de factos – como mencionei acima, os testemunhos por parte da pessoa que está a gravar em modo selfie e que por vezes faz um relance ao namorado(a) ou aos amigos durante a sobremesa para declararem como estava o almoço ou jantar, por exemplo; presença de personagens para uma maior dramaticidade – os berros, a agitação da câmara, mais recentemente os filtros, enfim, toda uma panóplia de choque, principalmente em conjunto.

© Peter Schoenborn

Em suma, as redes sociais são uma fonte de documentários gratuitos, realizados pelos próprios, sobre os próprios, para semelhantes, sem que nada se acrescente, e é neste último ponto que reside o problema. A possibilidade das redes sociais se tornarem uma mais valia para a difusão da cultura, da arte, da literatura, da música, do teatro, do cinema, etc., era quase infinita – ou até mesmo como uma “arma política” (por parte do povo e não dos políticos através da retórica). Mas tudo isto se camuflou por entre os/as modelos frustrados(as) ou as celebridades/influencers que ascenderam a tal posto da hierarquia só “porque sim” – muito parecido ao estilo das velhas presenças nas discotecas de participantes de reality shows que eram famosos, recebiam cachês gordos por serem famosos, contudo ninguém sabia ao certo porque é que eram tal e o que fizeram para tal, até migrarem, eventualmente, para uma vida “normal” e desconhecida de novo – devido ao carácter fútil que os tornou famosos.

Há que denotar o enorme fosso entre os que de facto fazem algo – como por exemplo artistas, designers, escritores – que podem por vezes tirar partido do melhor dos dois mundos – isto é, comportarem-se como modelos e em simultâneo como agentes culturais – perceber o fundo de verdade que há em cada “documentário de rede social” e retirar algum conteúdo dali.

Em contrapartida há o desgaste do marketing que levou umas quantas pessoas a agenciarem-se ao ponto de serem convencidas a vender produtos que nem sequer gostam/usam, a refletir uma falsidade a troco de miséria capitalista, fama falsa, ilusões de um próspero mundo por vir aos vinte anos a vender leites/chás/iogurtes ou ginásios, cafés, restaurantes, por meio de um documentário dissimulado como uma mais valia ao lifestyle.

Tudo isto já está mais que batido e esbatido, mas há uma enorme confusão na minha cabeça, como a simplicidade de comer um crepe, ir ao ginásio ou beber um simples café se tornou numa rede complexa de egocentrismo banal e necessidade de “aparecer” apenas por “aparecer”. Claro que o inofensivo perfil privado que tenta imitar continuará inofensivo, quanto muito um pouco mais chato, mas a “pseudo-influência” que requer a venda do “bem-estar”, é mesmo necessária?

Há um constante esquecimento da singularidade, da exclusividade na diária imitação – que é preenchido por números num quadro digital – e a carência de uma opinião social. A minha questão gira então em torno das pessoas que seguem tais influencers.

Porquê seguir algo que nada acrescenta?

Penso que podem ser as novas “novelas” da nossa geração, o desenrolar constante de acontecimentos na vida destes(as) influencers aos quais basta o viver para provocar um determinado engajamento, interações e uma espécie de “esvaziamento” de preocupações.

O mundo não está ao alcance de todos, por isso fica-se antes pela praia, lagos, piscinas e todas as paisagísticas leves que careçam do buraco negro da humanidade.

Sobre o autor

Licenciado em Filosofia (atual mestrando). Escritor, no sentido lato da palavra. Um apaixonado por boa literatura. Presente através do ig (@marcioluislima) e de becodapedrazul.wordpress.com. Toda a escrita tem por base o detalhe certo, daí sucede-se a vida.

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