O consumo do documentário, que visava a uma determinada informação, tornou-se antes um adorno estético que visa a apreciação de consumo rápido – sob a forma de série ou filme de “blockbuster” camuflado por um grande alarido estridente. A necessidade documental transpareceu dos grandes ecrãs para os mais pequenos e por ventura para as “telas de luz azul”.
A afluência dos influencers deu à costa uma nova onda de documentários amadores sem conteúdo que lhes valha na maior parte das vezes, isto porque usam de maneira errada o seu potencial.
O afastamento das redes sociais, que muitos de nós já sentimos vontade, desde a desinstalação dos aplicativos, até à desintoxicação evitando dias a fio sem as abrir, não é novidade nenhuma. Note-se é que já não se trata apenas da toxicidade (que pretendo abordar noutra crónica), mas também de uma banalidade da “boa vida”. O lifestyle que é constantemente vendido na frente das câmaras e que desvela uma vida em tom cinematográfico que não segue guião, parece já permanecer dentro de uma lente da realidade ligada vinte e quatro horas.
Há um certo desligamento da emoção humana para forjar o social. Por exemplo, os próprios animais domésticos (e nalguns casos até os selvagens) já se tornaram “vítimas” deste embuste e fixação alienada desprovida de emoção – ou antes emoção barata. Existem uns quantos perfis de instagram para “modelos” animais, onde estes são fotografados e documentados como estrelas de cinema.
Vejamos alguns dos recursos do documentário e comparemos à habitual rotina das redes sociais: a presença de um locutor – nas redes sociais está associado ao dono do perfil que descreve os seus planos ou acontecimentos, geralmente associados a uns quantos “chavões”, com tiques típicos e colocando a voz sempre no mesmo timbre; a construção do documentário com depoimentos, contando uma história por meio de factos – como mencionei acima, os testemunhos por parte da pessoa que está a gravar em modo selfie e que por vezes faz um relance ao namorado(a) ou aos amigos durante a sobremesa para declararem como estava o almoço ou jantar, por exemplo; presença de personagens para uma maior dramaticidade – os berros, a agitação da câmara, mais recentemente os filtros, enfim, toda uma panóplia de choque, principalmente em conjunto.
Em suma, as redes sociais são uma fonte de documentários gratuitos, realizados pelos próprios, sobre os próprios, para semelhantes, sem que nada se acrescente, e é neste último ponto que reside o problema. A possibilidade das redes sociais se tornarem uma mais valia para a difusão da cultura, da arte, da literatura, da música, do teatro, do cinema, etc., era quase infinita – ou até mesmo como uma “arma política” (por parte do povo e não dos políticos através da retórica). Mas tudo isto se camuflou por entre os/as modelos frustrados(as) ou as celebridades/influencers que ascenderam a tal posto da hierarquia só “porque sim” – muito parecido ao estilo das velhas presenças nas discotecas de participantes de reality shows que eram famosos, recebiam cachês gordos por serem famosos, contudo ninguém sabia ao certo porque é que eram tal e o que fizeram para tal, até migrarem, eventualmente, para uma vida “normal” e desconhecida de novo – devido ao carácter fútil que os tornou famosos.
Há que denotar o enorme fosso entre os que de facto fazem algo – como por exemplo artistas, designers, escritores – que podem por vezes tirar partido do melhor dos dois mundos – isto é, comportarem-se como modelos e em simultâneo como agentes culturais – perceber o fundo de verdade que há em cada “documentário de rede social” e retirar algum conteúdo dali.
Em contrapartida há o desgaste do marketing que levou umas quantas pessoas a agenciarem-se ao ponto de serem convencidas a vender produtos que nem sequer gostam/usam, a refletir uma falsidade a troco de miséria capitalista, fama falsa, ilusões de um próspero mundo por vir aos vinte anos a vender leites/chás/iogurtes ou ginásios, cafés, restaurantes, por meio de um documentário dissimulado como uma mais valia ao lifestyle.
Tudo isto já está mais que batido e esbatido, mas há uma enorme confusão na minha cabeça, como a simplicidade de comer um crepe, ir ao ginásio ou beber um simples café se tornou numa rede complexa de egocentrismo banal e necessidade de “aparecer” apenas por “aparecer”. Claro que o inofensivo perfil privado que tenta imitar continuará inofensivo, quanto muito um pouco mais chato, mas a “pseudo-influência” que requer a venda do “bem-estar”, é mesmo necessária?
Há um constante esquecimento da singularidade, da exclusividade na diária imitação – que é preenchido por números num quadro digital – e a carência de uma opinião social. A minha questão gira então em torno das pessoas que seguem tais influencers.
Porquê seguir algo que nada acrescenta?
Penso que podem ser as novas “novelas” da nossa geração, o desenrolar constante de acontecimentos na vida destes(as) influencers aos quais basta o viver para provocar um determinado engajamento, interações e uma espécie de “esvaziamento” de preocupações.
O mundo não está ao alcance de todos, por isso fica-se antes pela praia, lagos, piscinas e todas as paisagísticas leves que careçam do buraco negro da humanidade.
Sobre o autor
Licenciado em Filosofia (atual mestrando). Escritor, no sentido lato da palavra. Um apaixonado por boa literatura. Presente através do ig (@marcioluislima) e de becodapedrazul.wordpress.com. Toda a escrita tem por base o detalhe certo, daí sucede-se a vida.