Não sei como tive estômago para engolir muitos anos. Sei apenas, hoje, que não os digeri. Metade deles são espinhas atravessadas na minha garganta, a outra metade são uma indigestão quase crónica. Podia mencionar nomes. Podia mencionar cobardias, infantilidades, baixezas, pancadas na cabeça e murros no estômago. Processo ambicioso, esse, de afastar a minha própria rejeição (nós conseguimos convencer-nos de tudo – feliz e infelizmente). “A manhã desaba como uma pilha de pratos”, escrevia Robert Desnos. E tinha razão. Tem razão. Desaba a manhã e desaba o resto, conforme os dias. Alguns vivem-se como um espasmo de vísceras – aguentam-se, portanto, quer queiramos, quer não. Posso juntar algo que Maria Zambrano dizia e que parece ser o que agora sinto (tenho dúvidas sobre o que sentir – valha-me isto, sou um homem com as dúvidas muito claras): “o nada faz nascer” – e não é que faz mesmo?
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Nota: Este artigo não foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.
Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.