Revista Rua

2024-12-18T01:38:04+00:00 Cultura, Literatura, Radar

“Os Dias do Ruído” de David Machado, é um retrato fiel ao poder das ações

Passado numa época pré-pandémica, mas já a tocar-lhe com as pontas dos dedos, esta é uma história que poderia ser verdadeira. Tanto quanto a distopia na qual já parecemos viver.
Cláudia Paiva Silva18 Dezembro, 2024

“Os Dias do Ruído” de David Machado, é um retrato fiel ao poder das ações

Passado numa época pré-pandémica, mas já a tocar-lhe com as pontas dos dedos, esta é uma história que poderia ser verdadeira. Tanto quanto a distopia na qual já parecemos viver.

“Só que o mundo hoje não passa de uma enorme caixa de ressonância. Milhões de pessoas que falam para milhões de pessoas que falam para milhões de pessoas. O ruído sobrepõe-se a tudo, à História e à verdade aos nossos sonhos mais profundos, e as vozes que o compõem são, quase sempre, indistinguíveis.”

Laura, fotojornalista em cenários de guerra, portuguesa nascida em Peniche, com uma carreira internacional deslumbrante, mata um homem num acaso de vida ou morte. A partir daí a sua vida dá uma volta de 180 graus.

Embora pudéssemos desconsiderar o contexto desse assassinato, ele ressoa aos dias de hoje, pleno ano de 2024. Politicamente, religiosamente, qual o impacto de determinada ação, à luz da “moral” e da sociedade moderna contemporânea e ocidental?

Amplificando-se pelos contornos da internet e, até mesmo da darkweb, Laura, que acaba por escrever um livro baseado na experiência que passou, passa a sentir a sua vida como algo inacabado, onde o único real valor é exatamente a irrealidade das redes sociais, dos conteúdos partilhados com o seu nome, o número de seguidores, os comentários. Estes últimos que palpitam com os rancores próprios de um mundo cada vez mais polarizado e radicalizado.

Onde muitos veem Laura como uma salvadora, alguém que impediu um atentado terrorista em plena capital da França, outros veem-na como um alvo a abater, uma mulher (principalmente), com ideias políticas (será?), com uma vida digna (impossível).

Perante um crescente rol de ameaças, cada vez mais perto de si fisicamente, Laura vê-se confrontada com o seu maior receio, contudo. Regressar a casa dos pais, onde a mãe, doente, se resignou a uma vida de silêncios e esquecimento, e o pai, a uma vida entre a pesca, os negócios obscuros e a contínua ideia de que ele tudo pode, tudo decide, tendo igualmente cortado qualquer tipo de ligação com as duas filhas.

Um regresso que a faz pensar nas suas prioridades, na sua relação com os amigos, na sua interação com as redes sociais, no papel da mulher resiliente e sobrevivente nos vários pontos do mundo em conflito, mas também, no papel das mulheres na sua própria casa, à medida que conhece a sua mãe de uma forma como nunca imaginou.

“Não ter de fingir encontrar-me num patamar de inteligência superior é um alívio, quase uma conquista espiritual, mas também uma tragédia interior. Nesta casa – nesta cidade? – ninguém espera de mim uma oratória política e culturalmente consciente, carregada de eloquência. Lá forma, no mundo, também não, eu sei. Mas parecer mais do que sou foi o que fiz a vida toda desde que saí daqui. Ao ponto de se tornar parte do que sou. Como não chorar essa ausência?”

Este é um livro que nos obriga a refletir sobre o papel da comunicação moderna nas nossas vidas. Da forma como as nossas palavras podem ser extrapoladas ou usadas, para determinados âmbitos, e, principalmente, como todos somos alvos fáceis de ódios e vinganças, apenas por mostrarmos o que somos.

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