No Qatar desde 2015, ano em que deixou a sua cidade de Braga rumo ao Médio Oriente, Nuno Pereira é um dos portugueses que, por estes dias, vive intensamente a euforia do Mundial. Envolvido na dinâmica diária da comunidade local e já “acostumado” à cultura, depois de um choque inicial grande, o bracarense aceitou falar com a RUA para dar conta do ambiente atual no Qatar. Entre o entusiasmo do futebol que une povos e as polémicas que os afastam, este é um relato independente sobre como é viver no Qatar e como este será um Mundial histórico.

Em primeiro lugar, gostaríamos de perceber o que te levou ao Qatar. Há quanto tempo estás no país e o que fazes profissionalmente?
Antes de mais queria dizer que tenho visto outros conterrâneos que vivem no Qatar e que se propuseram a dar entrevistas para depois serem nefastamente acusados e criticados por coisas que saem da imaginação alheia. Queria deixar claro que não fui pago por ninguém para dar esta entrevista, isto é uma perspetiva pessoal e que tenta ser o mais fidedigna possível. É bom debater opiniões, mas é preciso fazê-lo com conduta e sem arrogância.
Estou no Qatar há sete anos e trabalho como produtor de conteúdos digitais. Antes de vir para cá, morava e trabalhava em Braga, cidade de onde sou orgulhosamente oriundo, mas também já vivi e trabalhei no Porto, e fiz Erasmus em Aix-en-Provence, em França. Houve duas coisas que me levaram ao Qatar: a perspetiva de uma aventura que me pudesse fazer desligar da realidade portuguesa que, em 2015, tal como agora, na minha opinião não abria grandes perspetivas futuras, e também a possibilidade de ter acesso a uma oportunidade profissional que nunca teria em Portugal – e não falo apenas da vertente financeira que obviamente também pesou, mas também pela possibilidade de fazer parte de um projeto social com pressupostos interessantes.
Tem sido, de facto, uma experiência que para mim tem um valor inestimável pela oportunidade de interagir com pessoas de todo o mundo e de conhecer um pouco melhor a realidade dos países de onde vêm e os seus pontos de vista. Foi uma mudança transformadora, a minha perceção do mundo e da realidade alterou-se completamente e nunca mais será a mesma.
Quais foram as tuas primeiras impressões do país?
Quando cheguei, o Catar era um projeto em andamento. Havia obras por todo o lado. Ainda assim, a nível arquitetónico, a sensação foi de que estava noutro planeta, num mundo antagónico onde a modernidade ousada, audaz com toques de arrogância, se tentava sobrepor à modéstia de outros tempos. Vi coisas imediatamente deslumbrantes a contrastar com coisas arcaicas e rudimentares. A completar o quadro, uma paisagem desértica, rochosa, sem montanhas, rios ou flora, que ainda assim não deixa de ser deslumbrante. A nível social vi uma diversidade cultural muito maior do que aquela que temos em Braga ou até em Lisboa.

Foi fácil para ti te adaptares à cultura ao longo destes anos? O que foi mais difícil em termos de adaptação ao país?
Não foi fácil, tive um choque cultural no início (ainda que tenha sido muito bem recebido pelos meus colegas de trabalho). Demora o seu tempo a perceber as dinâmicas laborais e sociais, mas quando isso é adquirido tudo se torna mais fácil. Felizmente nessa altura muita gente me falou de histórias de outros emigrantes portugueses que levaram o seu tempo a adaptar-se ao país para o qual emigraram e que ao fim de um ou dois meses já se sentiam integrados e queriam levar aquela experiência avante. Aconteceu-me o mesmo e essas histórias deram-me alento para continuar.
“Doha é uma cidade enorme e cosmopolita, mas no que toca a grandes metrópoles o Qatar fica-se por aqui.”
“Doha é uma cidade enorme e cosmopolita, mas no que toca a grandes metrópoles o Qatar fica-se por aqui.”
Como descreverias o Qatar hoje em dia? Para além da folia do Mundial?
Doha é uma cidade enorme e cosmopolita, mas no que toca a grandes metrópoles o Qatar fica-se por aqui. Há mais algumas cidades, que em Portugal estariam no limiar de serem classificadas como tal, nomeadamente Al Khor e Al Wakra, cidades que também farão parte do Mundial, com um estádio cada, e que terão, talvez, a dimensão de uma cidade como Barcelos. Convém entender que o Qatar só é um país independente há 51 anos. É um país muito recente tal como os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein ou o Kuwait. No caso do Qatar, tem no seu território a segunda maior reserva mundial de gás natural e isso tem potenciado um desenvolvimento sem precedentes, bastante acelerado, o que acaba por se refletir socialmente, uma vez que obriga a uma adaptabilidade demasiado rápida a novas ideias e normalmente as pessoas e as sociedades precisam de tempo para se ajustarem e para se desenvolverem ao seu próprio ritmo.
Em comparação com 2015, ano em que pisei o solo de Doha pela primeira vez, posso constatar que já se notam muitas diferenças a vários níveis que nesta entrevista não é possível precisar. Mas diria que é um ponto no globo de convergência de valores, ideias e origens. Existe uma grande diversidade e confluência cultural e uma arquitetura única que tenta sempre aliar o futurismo à conservação de elementos da cultura árabe. É realmente único e acho que Doha é já mais interessante de se ver do que o Dubai.
Como é óbvio, a realização do Mundial tem colocado o Qatar nas bocas do mundo e nem sempre por boas razões. Podemos falar sobre a tua perceção sobre este envolvimento do país na realização do Mundial?
Sim, podemos. A realização de um Mundial no Médio Oriente era algo impensável quando eu era criança e isto demonstra que o Mundo mudou. Esta é uma ocasião especial para milhões de pessoas que sentem ter sido idealizadas e retratadas de uma forma pouco fidedigna ao longo dos anos, em especial pela Europa e Estados Unidos. Têm aqui a oportunidade de se sentirem representadas e de mostrarem como realmente é a sua cultura e os seus paradigmas.

A construção dos estádios foi polémica. Muitas vozes se levantaram contra a violação dos direitos humanos. Qual é o teu ponto de vista sobre esta questão? A população em geral foi acompanhando estas polémicas? Existiu desconforto social relativamente a esta situação?
Na realidade, o alarido é ensurdecedor e há muita desinformação. Todo este ruído levou-me a ler a Declaração Universal dos Direitos Humanos na íntegra, uma vez que nunca vi expressa em nenhuma notícia ou artigo de opinião exatamente que artigos alegadamente o Qatar tem vindo a usurpar. O tema dos Direitos Humanos tornou-se um chavão para muita gente, mas é um tema bastante complexo e há inclusivamente alguns pontos de discórdia, uma vez que não se trata de uma jurisdição, mas antes de uma referência ética e moral de interação humana, adotada pelos Estados Membros das Nações Unidas. De facto, nem todos os pontos são inequívocos ou claros. Pude até constatar que mesmo Portugal não cumpre na íntegra esta disposição. No entanto, queria aproveitar a oportunidade para dizer que se deve valorizar mais o Profissional da Construção Civil. Esta é uma profissão que decididamente não é devidamente compensada para o esforço e risco que comporta, nem para a importância que tem, seja em que parte do mundo for, com poucas exceções. É uma profissão de risco, muita gente não a quer fazer, mas tem de ser desmistificada para que não seja percecionada como algo intelectualmente redutor, uma vez que é uma profissão vital para o desenvolvimento de qualquer sociedade.
De resto, eu acho que estamos a lidar com vários fenómenos ao mesmo tempo que se têm intercalado. Por um lado, eu vejo isto como um episódio da globalização que é um fenómeno ainda muito recente e que leva a choques ideológicos, divergências fundamentais e por aí fora. Depois isto é também um fenómeno mediático, é um tema demasiado apetecível para se ficar de fora, pela oportunidade que gera de criar notícias que vendem. Todavia, há muitas imprecisões nas notícias transmitidas em Portugal e no resto da Europa e há também muitas alegações que não refletem factos verificados. Há muita especulação sobre coisas que podem não ser verdade e depois há uma reação natural das pessoas àquilo que dão como um dado adquirido, mas que na realidade não são factos provados. Compare-se, aliás, o que foi a cobertura dos Jogos Olímpicos de Pequim ou do Mundial 2018 na Rússia, com a cobertura que está a ser dada agora a um país pacífico e dialogante. Não há contra-ponto, apenas uma visão subjetiva da realidade.
“Há muitas imprecisões nas notícias transmitidas em Portugal e no resto da Europa e há também muitas alegações que não refletem factos verificados.”
“Há muitas imprecisões nas notícias transmitidas em Portugal e no resto da Europa e há também muitas alegações que não refletem factos verificados.”
Em relação à forma como estas alegações foram sendo recebidas aqui pela comunidade local ao longo dos anos, vi campanhas de recolha de roupas e alimentos para trabalhadores de construção civil e vi também iniciativas que visavam a distribuição de água enquanto se davam os trabalhos de construção. Houve também pedidos para aliviar o esforço de outras profissões, como seguranças, por exemplo, que foram atendidos pelas autoridades locais e entidades privadas. Ao longo dos anos foram também introduzidas várias reformas laborais, que foram novidade no GCC e que foram recentemente reconhecidas pela seleção da Dinamarca, uma das mais críticas em relação ao Mundial antes de partir para Doha. Por último, e infelizmente, acho que estamos a lidar com um episódio de racismo da sociedade ocidental para com os países do Médio Oriente. Denota-se prepotência, presunção de superioridade civilizacional, falsos moralismos e colonização intelectual. Ainda há muito preconceito para com países de etnia árabe, provavelmente por causa do 11 de Setembro e da maneira como certos conflitos na região foram retratados pelos meios de comunicação ocidentais ao longo dos anos.

As leis do país também poderão colocar em causa algumas “tradições” do Mundial, como já foi mencionado em relação à proibição de consumo de álcool nas ruas. Consideras que estas questões vão tornar este Mundial diferente?
Forçosamente. A ideia é que seja diferente, os Mundiais não devem ser todos iguais, nem devem ser monopolizados pela Europa ou América do Sul.
Já têm existido alguns desfiles de claques, sendo que, mais uma vez, as notícias referiram polémicas quanto à nacionalidade destes adeptos. Apesar do desmentido posterior, muito se falou sobre a existência de adeptos a serem pagos para usar as cores portuguesas, por exemplo. Qual é o teu ponto de vista sobre isto?
É falso. Não faço parte do Fan Group de Portugal, mas além de conhecer o marido da fan leader, estou no grupo do Whatsapp onde imensa gente deu conta da sua insatisfação devido a essas alegações. O que acontece é que o Qatar só tem cerca de 400 mil nativos, o resto da população é composta por estrangeiros. Muitos desses estrangeiros são oriundos de países que não se apuraram para o Mundial e então essas pessoas decidiram juntar-se a um movimento de fãs de acordo com a sua preferência pessoal. No caso do grupo português, há indianos de Goa que inclusivamente participaram num torneio amigável que contou com duas equipas compostas por portugueses e outras duas compostas por goenses. De resto, lembro-me que no Mundial ‘98 muitos portugueses apoiaram o Brasil, Espanha e França uma vez que Portugal não se apurou. É uma situação normal. Além disso, muita gente quer ver o Cristiano Ronaldo. Na primeira fase de compra de bilhetes, houve um sorteio e no meu caso não me foi atribuído um bilhete de categoria 4, que custavam cerca de 10€, uma pechincha, mas alguns colegas de trabalho, da Índia e da Jordânia por exemplo, tiveram a sorte de os conseguir enquanto eu fiquei a ver navios… As pessoas visadas por essas alegações sentiram-se ofendidas e alvos de racismo e discriminação étnica por parte dos meios de comunicação social europeus.

Qual é o ambiente que se vive aí com adeptos?
No momento dos últimos preparativos sentia-se alguma tensão, mas também já se sentia o entusiasmo na receção às equipas. Dava ideia que a euforia estava prestes a ser libertada. O país parou para isto! No geral, creio que tudo correu bem, tive o privilégio de estar na cerimónia de abertura que foi memorável, e que julgo ter transmitido uma mensagem de união e inclusão cultural. Pelo menos a intenção foi essa.
São esperados mais de 1 milhão de turistas no Qatar. Está o país preparado?
Não trabalho em logística e não gosto de falar de coisas que não entendo, mas o sentimento local é de que sim, está tudo a postos. Houve uma preparação intensa apesar das dificuldades impostas pela pandemia. Sei que todas as infraestruturas desportivas foram devidamente rentabilizadas para este Mundial.
Focando no futebol em si, o que esperas deste Mundial? É um Mundial atípico sobretudo pela realização durante o outono europeu…
Honestamente, agrada-me que seja realizado no fim do ano. Na Europa calha no Outono, mas na América do Sul, por exemplo, é primavera, assim como noutras latitudes. Não podemos abordar a realidade de uma forma Eurocentrista, o mundo não tem de ser construído em redor dos desejos e vontades dos europeus, esta é uma das ideias que retenho depois de interagir com pessoas de todos os cantos do globo aqui no Qatar – e era um erro no qual também caía sem me aperceber. Acho até que pode vir a dar a perspetiva de que a calendarização da época desportiva pode ser feita de outra forma no futuro. É preciso estar aberto a novas ideias, mas as pessoas são sempre muito resistentes à mudança e não gostam de encarar a realidade sob outros pontos de vista. O novo pode ser desconfortável, mas é ao mesmo tempo muito mais aliciante.
“Não podemos abordar a realidade de uma forma Eurocentrista, o mundo não tem de ser construído em redor dos desejos e vontades dos europeus, esta é uma das ideias que retenho depois de interagir com pessoas de todos os cantos do globo aqui no Qatar – e era um erro no qual também caía sem me aperceber.”
“Não podemos abordar a realidade de uma forma Eurocentrista, o mundo não tem de ser construído em redor dos desejos e vontades dos europeus, esta é uma das ideias que retenho depois de interagir com pessoas de todos os cantos do globo aqui no Qatar – e era um erro no qual também caía sem me aperceber.”
Qual é o teu prognóstico para a participação portuguesa neste Mundial?
Honestamente faço tábua rasa a prognósticos, no entanto, seria surpreendente se fosse eliminada na fase de grupos uma vez que é uma das equipas que pode efetivamente ganhar a prova. A chave do sucesso estará na capacidade de unir a equipa e criar um ambiente em que todos se sintam úteis e valorizados. Esse factor é apontado como um dos mais determinantes pelos jogadores em várias entrevistas e documentários desportivos. Quando os jogadores se sentem parte do processo de tomada de decisão, há um sentido de missão maior. Há outros factores a ter em conta, obviamente. Eu sei que a FPF dispõe de todos os meios tecnológicos e do conhecimento para potenciar a vertente física e tática, temos grandes especialistas nessas áreas, mas a questão humana cabe ao treinador. Veremos se o Selecionador reúne esse tipo de aptidões sociais para criar um ambiente favorável ao sucesso.
Em relação a seleção do Qatar, vejo que ninguém parece esperar nada deles, mas convém lembrar que são os atuais campeões asiáticos e, jogando em casa, têm todas as condições de chegar aos oitavos de final.
Entre polémicas atuais, Cristiano Ronaldo continua a ser a “estrela” da nossa Seleção. Concordas? Está o Qatar ansioso por ver Cristiano Ronaldo a jogar na Seleção Portuguesa?
Como referi anteriormente, o Ronaldo é uma das grandes atrações da prova, a maior parte das pessoas quer vê-lo e os jogos da seleção portuguesa estão esgotados por causa dele. Creio que ainda pode ser um jogador determinante, há a expectativa de que ele trará a sua melhor versão para o Qatar já que foi isso que sempre fez em momentos adversos da sua carreira. Sempre reagiu com grandeza quando foi questionado. Com certeza que o Ronaldo quererá mostrar que ainda está aí para as curvas… Este é o seu último Mundial, a última oportunidade para ser campeão do Mundo e acredito que esteja bem fisicamente. Ele tem uma idade fisiológica inferior à idade cronológica. Todavia, acho que às vezes a sua presença intimida e restringe as ações dos outros jogadores da seleção, é preciso encontrar um ponto de equilíbrio e dar também espaço aos outros para se expressarem. Temos jogadores muito talentosos e outros grandes executantes que podem ser importantes em momentos em que as coisas não estejam a sair tão bem ao Ronaldo.

E o pós-mundial? Já se fala nisso no Qatar? Que futuro para os estádios, por exemplo?
Sim, há muito tempo. A informação está toda disponível no site oficial qatar2022. Como se sabe, normalmente um Mundial tem entre 12 a 14 estádios e este só tem oito, o que, atendendo ao que aconteceu em Portugal no Euro 2004, faz todo o sentido que se tenham construído poucos estádios. Depois do Mundial manter-se-ão apenas quatro. Dois vão desaparecer completamente, serão desmontados e enviados para países em desenvolvimento e que precisem das infraestruturas para desenvolver o futebol. O mesmo acontecerá a mais dois estádios, com a diferença que estes manterão apenas a bancada inferior, sendo que a bancada superior dará lugar a espaços comerciais, hotéis, clínicas e outros projetos. Todos os estádios têm um projeto agregador para área circundante e vão funcionar como polos de negócio, além de manterem a função de estádios para as equipas da Qatar Stars League. Para além disso, todos os estádios preenchem vários requisitos de sustentabilidade como o aproveitamento de água, elevado uso de materiais reciclados, entre outras coisas que não sei precisar.
Para os portugueses que não conhecem o Qatar ou que até gostariam de visitar o país, o que aconselhas? Que convite deixarias para um possível turista no Qatar?
Bem, primeiro espero que o Qatar se torne um destino financeiramente mais acessível para a generalidade da população mundial, para que a afluência de turistas aumente. Antes da pandemia as viagens até não eram caras, mas é um país mais voltado para o turismo de luxo… No entanto, nos últimos três anos houve um desencadear de projetos relacionados ao Turismo. Eles estão decididamente a apostar nessa área agora. Aconselho visitar: Souq Waqif, Msheirib Downtown, Katara, The Pearl, Banana Island, Education City, Qatar National Museum, Museum of Islamic Art, uma visita guiada à Sealine, no Deserto, Kayaking na Purple Island, uma ida de barco à Saifaliyah, uma visita ao norte à cidade de Shamal e à praia de Fwairit.