Rui Paixão: “O palco é um espelho muito claro daquilo que eu sou na vida”
Natural de Santa Maria da Feira, Rui Paixão tem desenvolvido um trabalho de exploração da linguagem de clown moderno e das infinitas possibilidades do teatro físico. A paixão pelo universo do circo e a liberdade de ser palhaço levaram-no a tornar-se no primeiro artista português a conseguir um papel principal numa produção do Cirque du Solei. Como encenador, tem também apresentado criações originais, onde desafia a transfiguração do próprio corpo até ao ponto de se tornar irreconhecível, num processo de ação-reação entre o próprio e o espectador.
Conversamos com Rui Paixão entre ensaios para estrear, na Sala Principal do Theatro Circo (em Braga), Hamster Clown¸ uma colaboração com o também ator e encenador Ricardo Neves-Neves, que nos leva numa viagem alucinante entre o riso e o terror, o nonsense e a vida, num espetáculo sem texto que se constrói em palco.
Sobes ao palco do Theatro Circo com Hamster Clown, uma colaboração com Ricardo Neves-Neves, que nos leva numa viagem alucinante, através de um monólogo sem texto. O que é que este homem, descendente de um rato, nos pode dizer sobre aquilo que não sabemos?
Absolutamente nada e é essa a grande característica deste espetáculo. Em primeiro lugar, nasceu em contexto de pandemia, estávamos ainda num terceiro confinamento, nem sabíamos se poderíamos estrear o espetáculo nem em que condições, mas havia uma grande urgência em reivindicar liberdade e o universo em Portugal andava muito à volta da política. Queríamos aliviar e sermos um comic relief de toda a situação. Queríamos fazer algo que tivesse uma mensagem e que não nos preocupássemos com aquilo que estávamos a dizer. Inverter a lógica do teatro que se vive hoje em dia: o teatro em Portugal é muito focado na literatura, em que começa sempre com um grupo de pessoas que se juntam a ler e a crescer, com base em referências textuais. Não queríamos que fosse racional e todo o trabalho é alucinante, é absurdo, não tem sentido…para dar esse espaço ao espectador para, tranquilamente, não ter que pensar e ser ilibado.
Aquilo que as pessoas vão ver é um exercício visual, de um ator a tentar transcender a uma figura: um tal rato, um alien, uma figura.
A ausência de texto e, portanto, a liberdade de improvisação, permite que a viagem em palco seja mais intensa e inusitada?
A ausência de texto, para mim, é brilhante. A palavra informa muito, pode limitar, apesar de que também abre e, por isso, não defendo apenas um teatro sem texto, mas neste caso, em particular, ao não trazer a palavra torna o léxico maior. A responsabilidade está mais no público do que em nós, porque não trabalhamos aquilo que queremos informar, mas sim o que queremos provocar. Cabe a quem está a ver o espetáculo tentar decifrar uma coisa que vai estar correta, no fim. Cada um vai tirar a sua própria interpretação.
É mais um personagem em que procuras responder à questão que te acompanha, no sentido de descobrires o teu próprio rosto antes da criação do mundo? É uma contínua viagem ao âmago?
Sim, eu ando sempre à procura do rosto que tinha antes de o mundo ter nascido. Essa vai ser a minha procura para a vida, porque é impossível decifrar que rosto é esse…é uma coisa utópica, que nunca vai acontecer, é mais uma demanda. O essencial é a procura pela honestidade e é isso que me agrada profundamente neste tipo de trabalhos. Tudo aqui é falso, é plástico, eu uso make-up e próteses, mas há uma pessoa em palco que deseja dar ao público a possibilidade de ser ela própria. Essa tentativa de agarrar este hamster lilás poderá responder à minha questão.
Partimos sempre do interior, eu tento responder com o que vai cá dentro e é uma viagem muito pessoal, porque parque dos sonhos, do pesadelo e de tudo aquilo que estávamos a passar na altura do confinamento. É por isso que não há texto, porque também não havia grande vontade de se dizerem coisas.
Como é que chegas à linguagem de Clown contemporâneo? O que é que mais te fascina nesta arte tão livre? É uma linguagem vastamente explorada cá, em Portugal, ou ainda há muito por evoluir?
Fascina-me o universo do circo. Primeiro porque sempre tive muito medo, mas, mais adulto, ao olhar para o circo, o que mais me agrada é que o circo é, só isto. Ao contrário do teatro e da dança, onde há mais necessidade em justificar/explicar, quando vemos um funâmbulo equilibrado num arame, isso já vale por si: já é uma investida sobre o que é estar vivo. O palhaço tem esse lugar na minha vida. Fiz a minha formação em teatro e no final dos três anos estava um pouco depressivo, porque sentia que não era aquilo que queria fazer para o resto da minha vida. Foi quando fui para a rua “passar o chapéu” e ser palhaço, sem saber ao certo o que isso era, que voltei a encontrar o sentido de liberdade e de fazer as coisas porque amamos.
Em termos do contemporâneo, o palhaço ainda não é uma técnica falada, toda a gente esconde. Vejo artistas que se apropriam da técnica de clown para chegarem aos seus conteúdos, mas depois quando dão entrevistas nunca falam, parece que é o primo afastado do teatro. Precisa de uma reinvenção. Em Hamster Clown, olhamos para a imagem do rato lilás e aquilo não é um palhaço, no entanto uso todos os códigos associados ao que é ser palhaço, nomeadamente a transfiguração: todos os palhaços usam make-up para aniquilar o seu próprio rosto para ser mais fácil provocar o público. O Hamster Clown também. Vou aos símbolos tradicionais e adapto-os para se tornarem mais interessantes no contexto contemporâneo, numa aposta mais alternativa. Gostava que mais artistas começassem a investir, porque é uma técnica pouco explorada e há muito caminho ainda.
O essencial é a procura pela honestidade e é isso que me agrada profundamente neste tipo de trabalhos.
E poderá o futuro garantir cada vez mais oportunidades para se trabalhar essa técnica, em Portugal?
Eu espero que sim, pelo menos essa é a minha demanda na vida. Vicemos num país com muitas certezas, principalmente os artistas, e sempre que se fala de pessoas que vêm do teatro há poucas a assumirem as suas dúvidas. Quando eu falo com um palhaço, há mais dúvidas do que certezas. Este é o lugar que eu encontrei com mais espaço para que, quem quiser experimentar, saberá que tudo é possível. É esse espaço que quero preservar, no qual tudo está certo.
Também orientas workshops, correto? Procuras explorar essa técnica através da formação?
Sim, chama-se “Eis um urso, agora devem fazê-lo rir” Eu não fiz formação em Clown e, verdadeiramente, não acredito nas técnicas, enquanto escola, porque não acho que corresponda à realidade. O que eu faço é trabalhar a minha própria metodologia com base na improvisação. Levar as pessoas a não pensarem que estão a fazer clown, mas estando. É por isso que interajo muito com o público, porque acredito que o clown acontece mais nos outros do que em mim. Eu apenas provoco.
És o primeiro artista português a ter um papel principal numa produção do Cirque du Solei, uma conquista ainda numa fase tão inicial. O que é que esta experiência te trouxe?
Foi super inesperado. É daquelas coisas que nem passava pela cabeça. Eu já andava na rua a “passar chapéu” e de alguma maneira viram um vídeo meu e contactaram-me para fazer uma audição. Fui fazer uma audição a Las Vegas e passei. Tinha 18/19 anos e foi um ano depois de eu sair da escola, pelo que andava ainda meio confuso e só queria ir para a rua e estar tranquilo. Foi muito precoce, mas ao mesmo tempo foram eles os primeiros a acreditar. Orgulho-me em dizer que não passei numa única audição em Portugal e, quando isto acontece, eu percebi: “É mesmo no circo, o meu lugar”. Desde sempre, que o circo é esse lugar e ainda há aquela imagética do freakshow, no sentido de pessoas com alguma deformação irem parar ao circo, porque na verdade é o lugar que acolhe tudo e todos, dando-lhe protagonismo. Foram os primeiros a dizer que eu devia ser palhaço para o resto da vida.
Acima de tudo, trouxe-me visibilidade, porque confere um rótulo: toda a gente que integra o Cirque du Solei trabalha durante horas e horas, diariamente. Quem trabalha na companhia tem de ter muita disciplina.
De entre várias interpretações com criadores nacionais, também já estreaste algumas produções próprias Apesar de serem diferentes entre si, o que é que procuras explorar com elas?
Em primeiro lugar, a transfiguração. É sempre o meu ponto de partida. Todas as personagens têm um nome próprio e todos os espetáculos se assumem com o nome da personagem. Interessa-me transfigurar o meu corpo até ao ponto de não me reconhecerem. Os espetáculos são sempre um pretexto para eu criar um corpo para destruir as pessoas que se juntam a mim. Cada um tem um objetivo específico e fazem parte de uma ordem. O Albano foi o primeiro, quando regressei da China, e precisava de “por os pontos nos is”: O que é que eu ando aqui fazer? O que é isto de ser palhaço? Já o Kinski é uma tentativa de perceber o que se pode fazer com isto e já se assemelha mais a um espetáculo, sem se falar de palhaços ou do statement.
Eu não acredito que o palhaço seja para fazer rir, está para além disso. Também não acredito que alguém que tenha a consciência que está a ser palhaço seja um palhaço. O ser palhaço acontece nos outros, acontece no momento em que o palhaço pega em alguém para ser palhaço. Esse momento delicado, de gestão do outro, começa a efervescer a energia que procuramos. O palco é um espelho muito claro daquilo que eu sou na vida.
E poderá o futuro garantir cada vez mais oportunidades para se trabalhar essa técnica, em Portugal?
Eu espero que sim, pelo menos essa é a minha demanda na vida. Vicemos num país com muitas certezas, principalmente os artistas, e sempre que se fala de pessoas que vêm do teatro há poucas a assumirem as suas dúvidas. Quando eu falo com um palhaço, há mais dúvidas do que certezas. Este é o lugar que eu encontrei com mais espaço para que, quem quiser experimentar, saberá que tudo é possível. É esse espaço que quero preservar, no qual tudo está certo.
Também orientas workshops, correto? Procuras explorar essa técnica através da formação?
Sim, chama-se “Eis um urso, agora devem fazê-lo rir” Eu não fiz formação em Clown e, verdadeiramente, não acredito nas técnicas, enquanto escola, porque não acho que corresponda à realidade. O que eu faço é trabalhar a minha própria metodologia com base na improvisação. Levar as pessoas a não pensarem que estão a fazer clown, mas estando. É por isso que interajo muito com o público, porque acredito que o clown acontece mais nos outros do que em mim. Eu apenas provoco.
És o primeiro artista português a ter um papel principal numa produção do Cirque du Solei, uma conquista ainda numa fase tão inicial. O que é que esta experiência te trouxe?
Foi super inesperado. É daquelas coisas que nem passava pela cabeça. Eu já andava na rua a “passar chapéu” e de alguma maneira viram um vídeo meu e contactaram-me para fazer uma audição. Fui fazer uma audição a Las Vegas e passei. Tinha 18/19 anos e foi um ano depois de eu sair da escola, pelo que andava ainda meio confuso e só queria ir para a rua e estar tranquilo. Foi muito precoce, mas ao mesmo tempo foram eles os primeiros a acreditar. Orgulho-me em dizer que não passei numa única audição em Portugal e, quando isto acontece, eu percebi: “É mesmo no circo, o meu lugar”. Desde sempre, que o circo é esse lugar e ainda há aquela imagética do freakshow, no sentido de pessoas com alguma deformação irem parar ao circo, porque na verdade é o lugar que acolhe tudo e todos, dando-lhe protagonismo. Foram os primeiros a dizer que eu devia ser palhaço para o resto da vida.
Acima de tudo, trouxe-me visibilidade, porque confere um rótulo: toda a gente que integra o Cirque du Solei trabalha durante horas e horas, diariamente. Quem trabalha na companhia tem de ter muita disciplina.
De entre várias interpretações com criadores nacionais, também já estreaste algumas produções próprias Apesar de serem diferentes entre si, o que é que procuras explorar com elas?
Em primeiro lugar, a transfiguração. É sempre o meu ponto de partida. Todas as personagens têm um nome próprio e todos os espetáculos se assumem com o nome da personagem. Interessa-me transfigurar o meu corpo até ao ponto de não me reconhecerem. Os espetáculos são sempre um pretexto para eu criar um corpo para destruir as pessoas que se juntam a mim. Cada um tem um objetivo específico e fazem parte de uma ordem. O Albano foi o primeiro, quando regressei da China, e precisava de “por os pontos nos is”: O que é que eu ando aqui fazer? O que é isto de ser palhaço? Já o Kinski é uma tentativa de perceber o que se pode fazer com isto e já se assemelha mais a um espetáculo, sem se falar de palhaços ou do statement.
Eu não acredito que o palhaço seja para fazer rir, está para além disso. Também não acredito que alguém que tenha a consciência que está a ser palhaço seja um palhaço. O ser palhaço acontece nos outros, acontece no momento em que o palhaço pega em alguém para ser palhaço. Esse momento delicado, de gestão do outro, começa a efervescer a energia que procuramos. O palco é um espelho muito claro daquilo que eu sou na vida.
Algumas dessas criações foram já apresentadas pelo projeto Holy Clowns. Podes apresentar-nos os objetivos deste projeto de intervenção artística? Qual é o propósito?
É um sonho: ter a minha companhia de circo, com base na construção de um espetáculo a partir da linguagem clown. Tive a necessidade de o construir porque recebo muitos convites para colaboração, como acontece em Hamster Clowns com o Teatro do Eléctrico, e o que as pessoas veem não corresponde a 100% àquilo que o Rui Paixão é. É uma colaboração, o que eu adoro, mas queria diferenciar as minhas colaborações com o que é o Rui Paixão a tentar investigar uma coisa muito pessoal.
Como tudo aquilo que eu faço é muito calculado, o processo ainda vai ser lento.
Que planos tens definidos para os próximos tempos? Alguma estreia ainda este ano?
Vamos estar com Hamster Clowns dia 16 de setembro, em Leiria. Este ano estou a assumir a direção artística e encenação do Circo do Coliseu Porto Ageas (Porto), que celebra 81 anos de história de Circo de Natal. Pela primeira vez, convidaram um encenador para fazer um espetáculo de autor. Este ano cabe-me a estreia, como encenador e como ator, porque gosto de defender as coisas por dentro. Estreamos a 8 de dezembro.