Nos últimos dias temos assistido a uma crescente cobertura dos acontecimentos em torno da tensão entre a Ucrânia e a Rússia. Um pouco à boleia daquilo que já é uma tradição na comunicação social, deparamo-nos diariamente – e até à exaustão – com entrevistas, debates e artigos sobre o tema. Os “especialistas” que ontem se pronunciavam sobre a pandemia passam agora a versar este conflito. Um epíteto que dispensa rigor e conhecimento ou outras coisas que não caem do céu. Brota de um simples fluxo palavroso e já está. Como bem diz o meu amigo Rui Calafate, são os chamados “ESPONS”, especialistas em porra nenhuma.
E é precisamente por não ser um especialista que não me vou debruçar sobre questões que já são amplamente discutidas (em grande parte por aqueles que não o são, infelizmente). Sobre as alegadas razões de cada lado… uma simples pesquisa no Google fará o leitor analisar por si (ou perder definitivamente a vontade de o fazer).
Mas porque a História Militar é um assunto que muito me interessa, os últimos dias têm sido ocupados com algumas discussões e troca de impressões com os que me são próximos, surgindo muitas dúvidas e questões. Assim, decidi fazer uma pequena pesquisa sobre os factos, apontando a informação e as correspondentes fontes da melhor forma possível. Neste artigo, pretendo fazer uma análise essencialmente militar e com os dados disponíveis no momento em que escrevo.
ENQUADRAMENTO
Hoje, 24 de Fevereiro de 2022, a Federação Russa iniciou a invasão da Ucrânia.
Desde meados de Outubro de 2021, os meios de comunicação relataram um movimento significativo de forças militares russas, na fronteira com a Ucrânia ou perto dela, e dentro do território ucraniano (na região ocupada da Crimeia).
Estes movimentos seguem uma construção militar semelhante, mas menos expansiva, àquela que ocorreu entre Março e Abril de 2021 e aos exercícios militares ‘Zapad’ de Setembro de 2021 (‘Zapad’ é tradicionalmente um exercício de comando que ocorre a cada quatro anos, centrado no que o Estado-Maior russo chama de ‘direção estratégica ocidental’). Estes exercícios ocorreram sob uma retórica cada vez mais agressiva dos políticos russos sobre a chamada ‘invasão da NATO’, perto das fronteiras da Rússia. O status geopolítico da Ucrânia está no cerne da questão.
Não obstante as novas negociações bilaterais que decorreram no início deste ano entre os Estados Unidos e a Rússia, bem como as reuniões conjuntas com a NATO e dentro da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o tom agressivo com que o Kremlin brindou a comunidade internacional prevaleceu, culminando numa invasão já anunciada.
No passado dia 6 de Fevereiro, o Conselheiro de Segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, alertou que “a qualquer momento, a Rússia pode tomar acção militar contra a Ucrânia”, acrescentando: “acreditamos que os russos colocaram em prática as capacidades para montar uma operação militar significativa na Ucrânia”.
Muitos observadores expressaram preocupações sobre uma possível nova invasão russa da Ucrânia, o que fizeram publicamente, pois o aumento das movimentações militares da Rússia nas últimas semanas é inegável.
OS NÚMEROS
A Federação Russa tem, no momento em que escrevo, aproximadamente 200.000 (duzentos mil!) homens neste teatro, entre forças terrestres, forças aéreas, forças navais, forças especiais, engenheiros e toda a logística apta a desencadear e a desenvolver um conflito de forma consolidada.
Também não passa despercebido o facto de, nos termos publicitados pela Reuters, a Rússia ter transferido reservas de sangue e outros apoios médicos para a fronteira ucraniana – um sinal preocupante de que Moscovo se preparou antecipadamente para as baixas que, naturalmente, ocorrerão.
Contudo, são inquestionáveis as diferenças entre as forças ucranianas e russas. No quadro abaixo, de acordo com a IISS Military Balance 2021 e a Financial Times, podemos verificar os números:
Analisado o quadro, verificamos que o poderio russo é incomparavelmente superior. E desengane-se quem entende que este é o mesmo exército russo que estava em ruínas logo após a Guerra Fria. Estamos perante um exército com uma capacidade de mobilidade considerável, moderno, motivado e bem treinado.
Igualmente inegável foi o aumento da presença militar russa na Crimeia desde 2014, com bases aéreas renovadas e armamentos navais no Mar Negro, incluindo submarinos e pequenas corvetas. Cada uma dessas plataformas tem uma capacidade de ataque de longo alcance que, segundo o ex-Director do Conselho de Segurança Jeffrey Edmonds, é uma das grandes diferenças nas forças armadas russas. Os ataques podem facilmente partir de várias direcções: da Bielorrússia, do continente russo e do Mar Negro, como aliás já se verificou.
Ambos os lados têm forças terrestres e os dois países também têm grande parte do material bélico fabricado na Rússia. No entanto, a artilharia do lado russo é mais moderna e em número bem maior do que a dos ucranianos. Além disso, a Rússia possui uma extensa rede ferroviária que facilita consideravelmente a movimentação de tropas, nomeadamente para reforçar contingentes.
A maior capacidade bélica da Rússia poderá não surpreender o leitor. Mas os dados acima transcritos são esclarecedores: trata-se de uma luta irrefutavelmente desigual.
AS MOVIMENTAÇÕES QUE ANUNCIAVAM ESTA INVASÃO
Desde 2014, dois Exércitos de Armas Combinadas (EACs) foram criados: nas Forças Armadas do Distrito Militar do Oeste, o 20.º EAC, com sede em Voronezh; já no Distrito Militar do Sul, o 8.ª EAC, com sede em Rostov-on-Don e Novocherkassk na fronteira com a Ucrânia. O intuito da criação destes EAC’s foi supervisionar, coordenar e controlar as unidades transportadas para a fronteira. O 8.º EAC também comanda as unidades separatistas nas regiões controladas pela Rússia no leste da Ucrânia (Donetsk e Luhansk). Além disso, temos as forças militares russas na Crimeia ocupada: a Frota do Mar Negro e as forças terrestres, aéreas e unidades costeiras focadas em defender a península e em negar a liberdade de movimento aos ucranianos.
Segundo Andrew S. Bowen, analista em assuntos europeus e russos, também foi documentada a mudança de equipamentos e unidades (incluindo mísseis balísticos de curto e médio alcance ‘Iskander-M’ e sistemas de artilharia pesada) do 41.º EAC do Distrito Militar do Centro, com sede em Novosibirsk, na Sibéria, para Yelnya, na fronteira leste da Bielorrússia.
Desde o final de Dezembro de 2021, a Rússia continuou a aumentar as suas forças na região. Vários relatórios relataram a movimentação de elementos da 1ª ‘Guards Tank Army’ (baseado fora de Moscovo) e do 6.º EAC (sediado fora de São Petersburgo) para áreas na fronteira nordeste da Ucrânia, perto Voronezh. Os relatórios também notaram o aumento significativo do movimento de unidades do 49.º e 58.º EACs em direcção à fronteira Sudeste da Ucrânia e às regiões controladas pela Rússia no leste da Ucrânia.
Além disso, a Rússia transportou uma parcela significativa de unidades do Distrito Militar Oriental (5.º, 29.º, 35.º e 36.º EACs), a 155.ª Brigada de Infantaria Naval, defesa aérea e unidades de artilharia para a Bielorrússia.
E altamente preocupante para os observadores internacionais é o facto dessas unidades incluírem uma logística de comando e controlo, altamente capaz de desencadear uma guerra eletrónica, aliada a uma artilharia pesada e sistemas estratégicos de defesa aérea (S-300V e S-400).
Os analistas também notaram o movimento de unidades aerotransportadas da Rússia (VDV) para a Bielorrússia e para a Ucrânia, na região ocupada da Crimeia. Estas unidades poderão desempenhar um papel fundamental na liderança de qualquer avanço russo, juntamente com forças especiais (spetsnaz) e unidades de infantaria naval.
Em suma, uma análise séria sobre estes acontecimentos facilmente nos levaria a concluir que era altamente previsível que a invasão viesse a acontecer.
E QUAL A VERDADEIRA IMPORTÂNCIA DESTAS MOVIMENTAÇÕES?
A presença militar de forças convencionais (soldados, tanques, artilharia, aviação) era, na opinião de vários analistas, apenas um meio de intimidação, já que defendiam que nem sequer ser necessário usar estas forças. A ruptura poderia ser feita por ‘spetsnaz’, paraquedistas, fuzileiros e outras forças especiais disfarçados de separatistas ucranianos. As forças convencionais seriam antes usadas para ocupar os territórios “instáveis” com o intuito de os “pacificar”. É, efectivamente, uma táctica militar básica que existe desde o início da civilização.
Contudo, o posicionamento das tropas russas, que envolveu uma operação logística de enorme dimensão, exigiu avultadíssimos gastos. Esta situação, aliada ao facto de termos posicionamentos militares rigorosamente determinados, faz-nos receber a notícia da invasão em vários pontos do território ucraniano sem grande espanto. E a Ucrânia depara-se agora com o exército russo localizado a Norte, Este e Sul do país.
O MOMENTO ACTUAL
Apesar de já estarmos perante uma invasão em curso, há um número considerável de tropas russas que se concentram ainda perto das fronteiras da Ucrânia. E só podem permanecer em posição por alguns dias antes de serem enviadas de volta para bases próximas, ou correm o risco de ver a sua capacidade significativamente diminuída, devido às condições climatéricas. Um facto que nos remete para a Segunda Guerra Mundial e para a famosa “Rasputitsa” – no Outono e principalmente na Primavera, ocorre um período de degelo que, transformando a superfície do solo em lamaçais, torna os caminhos russos impraticáveis.
Isto significa que o Presidente Vladimir Putin estava (e está!) sob crescente pressão para usá-los numa invasão total da Ucrânia – ou enviá-los de volta para áreas de teste, ainda no Sul ou Oeste da Rússia, mas dezenas ou mesmo centenas de quilómetros para o interior. Ou seja, poderemos assistir a uma movimentação de tropas russas para regiões mais distantes da fronteira – que poderá consistir num novo “bluff” de apaziguamento, já que é uma situação à qual os russos não poderão fugir – ou a um aumento considerável da dimensão da invasão russa.
Pelas informações que vão sendo divulgadas, o ataque russo iniciou-se às 5h da manhã. E começou, uma vez mais, com uma mentira de Vladimir Putin: o Presidente russo anunciou um ataque à região do Donbass, quando na verdade o ataque se iniciou de forma sincronizada por toda a Ucrânia.
A Rússia lançou ataques nas principais cidades e aeroportos da Ucrânia na quinta-feira, bombardeando mais de uma dúzia de cidades e vilas, inclusive fora da capital, Kiev. As tropas russas atravessaram a fronteira ucraniana em várias áreas ao mesmo tempo, alegadamente desembarcando na cidade portuária de Odessa, no Sul, e cruzando a fronteira leste em Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Nos arredores de Kiev, de acordo com informação divulgada através do ‘Telegram’, há também registo de ataques a caças ucranianos estacionados numa base situada perto de Kiev.
Mísseis russos atingiram alvos em Kharkiv, Dnipro e várias outras cidades, segundo as autoridades ucranianas, e vários incidentes foram relatados em Kramatorsk.
No Sul, pelo menos 18 oficiais militares ucranianos foram mortos num ataque nos arredores de Odessa, onde comandos anfíbios da Marinha Russa desembarcaram na quinta-feira, de acordo com Sergey Nazarov, assessor do prefeito de Odessa. Os militares russos também se movimentaram para o Norte da Crimeia, em direcção a Kherson. Outro vídeo verificado pelo “The Times” mostrou ataques ao Aeroporto Internacional de Kherson, no Sul da Ucrânia.
Surge a grande questão: a Rússia pretende “garantir” a paz nos territórios do Donbass, ou pretende algo mais? Limito-me a constatar aquilo que é evidente: a Rússia gastou avultados recursos e tem agora todos os componentes necessários para conduzir uma invasão em larga escala da Ucrânia. Alea jacta est. Disto, o leitor pode estar certo.
UM PARALELISMO COM A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
É um assunto que tem sido debatido amiúde. Tendemos a associar, inevitavelmente, a Segunda Guerra Mundial ao Holocausto e ao extermínio em massa de etnias. Mas o conflito foi muito mais do que isso. Não nos devemos limitar a uma comparação e/ou associação entre regimes que despoletaram uma guerra. Não é uma questão de comparar Putin a Hitler (a Lei de Godwin, obviamente, tinha de ressurgir nesta altura).
Foquemos o ponto no facto de, tal como no pré-Segunda Guerra Mundial, o período que vivemos é extremamente delicado. Hitler decidiu remilitarizar a Renânia em 1936 (o que estava proibido pelo Tratado de Versalhes). Em Março de 1938, deu-se o Anschluss (a anexação da Áustria). E em Setembro do mesmo ano, os acordos de Munique possibilitaram à Alemanha controlar a Região dos Sudetas, que culminou na ocupação do restante território da então Checoslováquia em Março de 1939.
Ora, nos últimos anos podemos estabelecer um paralelismo com aquele período. A ocupação da Crimeia foi vital para que, volvidos poucos anos, os russos estivessem em posição de desencadear um ataque em várias frentes. E isso foi também o que aconteceu com o estado-fantoche da Bielorrússia, que Putin tem na sua mão como se de um protectorado se tratasse.
Mas o ponto mais importante, em modesto entendimento, prende-se com a análise que a comunidade internacional faz ao longo dos tempos, com estes factos nas suas “barbas”: Hitler investiu nas forças armadas, definiu e efectivou um posicionamento estratégico das suas tropas, aos olhos de todos; Putin investiu nas forças armadas, definiu e efectivou um posicionamento estratégico das suas tropas, aos olhos de todos. Naquele tempo, a Sociedade das Nações procurava um apaziguamento, com temor pela repetição do terror da Primeira Guerra Mundial. Hoje, a Comunidade Internacional insiste na via da diplomacia quando todos os elementos nos fazem perceber, já há muito tempo, que a Rússia não tem interesse em fazê-lo.
De uma vez por todas, todos os intervenientes – e essencialmente os decisores – devem debruçar-se sobre os livros de História e deixar o “politicamente correcto” de lado. Não, não pretendo com isto dizer que devemos todos entrar em guerra. Apenas firmar que o “politicamente correcto” não salvou o planeta da maior carnificina de sempre com que a Segunda Guerra Mundial nos brindou. Hoje, sabemos que se Hitler fosse parado atempadamente, ainda que surgisse uma guerra, ela seria certamente mais curta e muito menos custosa para o mundo.
Tomemos também em devida conta o que Putin enalteceu em 2018, aquando do seu discurso em Volgogrado (antiga Estalinegrado): “Os defensores de Estalinegrado transmitiram-nos uma grande herança – amor à pátria, prontidão para proteger seus interesses e independência, permanecer forte diante de qualquer teste”, pedindo aos russos que seguissem o exemplo dos seus ancestrais. Hoje, a 24 de Fevereiro de 2022, Putin afirmou que a operação em curso visa “a desmilitarização e a desnazificação” da Ucrânia. O apelo a um sentimento que surgiu no curso da Grande Guerra Patriótica (o termo utilizado na Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas para descrever o conflito e o esforço de guerra do país contra a Alemanha Nazi ocorrido entre 1941 e 1945) não é inocente.
Por fim, fazer este pequeno apontamento: os Estados Unidos e os seus aliados perderam vinte anos com guerras no Iraque e no Afeganistão. E Putin está a fazer um aproveitamento desta negligência. Os americanos desenvolveram tácticas e sistemas de armas próprios para combater grupos terroristas, em prejuízo daquilo que precisam para uma guerra convencional. Aqui, a Rússia aproveitou e desenvolveu alguns sistemas interessantes. Também se treinou adequadamente e fez os devidos testes de campo na guerra da Síria (tal como a Alemanha fez na Guerra Civil Espanhola). A China está na mesma senda. Será esse o próximo capítulo desta crise?
Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.
Sobre o autor:
Advogado. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aficionado por música e desporto. Entusiasta de História Militar e autor da página WWII Stories Group.