
Dos poucos heróis da minha infância, há apenas um que não está nos álbuns de fotografias. Claramente, refiro-me ao senhor António, o faz-tudo da minha escola primária. Trabalhava numa arrecadação de chapas de zinco num recanto do pátio, onde consertava cadeiras mancas, retroprojectores, ventoinhas e portas empenadas, auxiliado por uma cigarrilha no canto da boca que, sem explicação aparente, nunca se apagava e induzia o olho direito numa epilepsia constante. Não tinha filhos porque Deus não quis,
(nas suas próprias palavras)
almoçava sozinho numa mesa ao canto do refeitório, só uma sopa, um pão e uma maçã descascada e cortada com o canivete de bolso. Usava uma boina axadrezada que descalçava quando as madeiras não cooperavam, coçando a sobrancelha com o anelar. Não tinha carro,
– São mamarrachos
vivia sem relógio e, provavelmente, era a pessoa mais pontual que conheci naquela escola. Tinha um ombro difícil que cooperava nos dias de sol e dificultava o trabalho nos dias de chuva, possuindo também um exímio papel meteorológico, indicando-lhe o tempo para o dia seguinte consoante lhe doesse à noite ou não. Apertava os parafusos difíceis à custa de palavrões, sabia de cor o hino nacional e sorria sempre, mesmo quando o encontrei debruçado sobre uma fotografia antiga, a soluçar lágrimas,
(fica só entre nós, senhor António)
mesmo a soluçar lágrimas sorria, sorria sempre e disse
– É a vida menino, vá brincar que já passou
hesitei umas vezes e fui. Pouco depois já estava a discutir com um par de tábuas e penso que tudo acabou por se arrumar. Anos mais tarde fui ver de si e não mais o encontrei e, portanto, quero a sua permissão para fazer minhas as suas palavras e dizer-lhe
(ai de si que não leia esta crónica)
– É a vida menino, vá brincar que já passou.
Sobre o autor
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor do livro Sentido dos dias e da página Francisco Santos Godinho. Escritor. Luto contra o tempo de caneta na mão.