Susana Cereja é uma visual artist multidisciplinada que, apaixonada pela beleza natural dos materiais, procura tirar intencionalmente objetos do seu contexto e aplicar-lhes uma nova significação – contemporânea e inovadora. Não gosta de estar parada, nem se conforma com a comodidade, e isso confere-lhe uma curiosidade inesgotável.
Ao ser movida pela vontade de explorar diferentes culturas e conceitos, recuperou a ancestralidade da técnica da Tapeçaria de Arraiolos, trazendo-a para a contemporaneidade, através de uma arte muito própria e capaz de abraçar muita informação. Autora de uma arte livre, ousada e pertinente, pinta sem medos um rasgo sobre o preconceito e grita pela elevação do feminismo.
Gostávamos de começar esta entrevista por conhecer o teu percurso. Sabemos que pintas e desenhas desde muito nova. A arte sempre fez parte do teu contexto familiar e social?
Vivo numa aldeia e atualmente tenho um estúdio perto de Lisboa, fora de toda a azáfama da cidade. Não tinha artistas na família e nem um contexto familiar relacionado com a arte ou a arquitetura, mas sempre pedi aos pais coisas para desenhar. Cheguei a pedir para ter aulas de pintura, de música, de dança contemporânea… tudo relacionado com artes. Para eles era estranho, porque tinham uma filha mais velha que seguiu o ensino dito “normal” e eu era diferente. Andava sempre com um caderninho e um estojo e desde cedo que tinha um kit de pintura a óleo. Aos 13 ingressei de forma autodidata na pintura e até vendi tudo o que pintava. (risos) Tinha imensa lata e era muito empreendedora.
E quando começaste, o que é que pintavas? Partias da observação?
Desenhava o que via, essencialmente, e depois tinha um imaginário do qual saiam coisas mais abstratas, mas adorava desenhar retratos. Durante o ensino básico, enquanto os meus colegas iam conversas ou jogar futebol, eu passava os intervalos na biblioteca desenhar a partir de livros. Tinha vontade de passar para o papel as imagens que via e era um verdadeiro desafio – aliás, a minha vida foi sempre assim. Gosto de ter desafios e se me sinto muito cómoda já não funciona para mim.
O teu trabalho desdobra-se entre a Pintura, o Desenho, a Ilustração, a Tapeçaria, a Gravura…podemos considerar que nada limita a tua arte? Interessa-te, precisamente, essa volatilidade com que a tua arte se adapta a múltiplos contextos e suportes?
Sim e isso provém muito da arquitetura. Antes de estudar, o meu trabalho – na altura ainda pouco conhecido artisticamente – era muito à base da pintura e do desenho e quando parto para a arquitetura começo a deparar-me com outras coisas. Estudei seis anos em arquitetura e a meio do curso fui tirar, em simultâneo, ilustração, nas Belas Artes. Depois recebi o convite para trabalhar como arquiteta no atelier da Joana Vasconcelos e na altura lembro-me de que toda a gente achou estranho ir trabalhar arquitetura para lá. (risos) O normal seria ir trabalhar para um atelier de arquitetura pura e não um atelier para projetar as peças da artista. Foram cinco anos de trabalho e percebi que tinha muito interesse pela grande escala e pelo têxtil (já vinha do meu contexto familiar, a minha avó sempre me ensinou a fazer ponto-cruz e tinha patchworks com vários tecidos).
Uma altura em que o atelier esteve mais parado, eu senti falta de ser mais criativa. Comecei a pensar que era o momento de consolidar as minhas ideias criativas e eu sempre gostei muito de inovar. Acho que isso vem da minha paixão pelos materiais. Pensei: “Qual será a técnica têxtil que estará esquecida ou não utilizada na arte contemporânea e que eu goste de trabalhar?”. Quando me deparei com o arraiolos quis aprender e hoje sou eu quem produz as minhas tapeçarias, apesar de ter uma equipa para produzir as maiores.
E as Tapeçaria em Arraiolos são uma parte identitária do teu trabalho. O que é que te fascina mais nesta arte tão particular? Como é que consegues aliar a inovação à preservação da tradição?
Comecei por aprender as bases com uma artesã de Lisboa e depois fui mesmo à vila de Arraiolos. Foi aí que fiquei mesmo fascinada! Percebi que as tapeçarias eram muito mais delicadas do que aquilo que eu conhecia. Também entendi que é muito diferente quando o artista trabalha uma técnica em estúdio do que quando manda fazer, porque neste caso o artista faz o desenho, mas não pensa na execução, o artesão vai produzir como já sabe. No meu caso, estou constantemente a testar até onde é que eu consigo chegar, porque há sempre muitas possibilidades de inversão ou de conjugação de pontos. Era muito diferente se eu não soubesse executar a técnica. Faço os meus desenhos a pensar na tapeçaria e na ética de construção do tapete. Encontrei o fascínio pela técnica no constante desafio: inovar, mas preservar. Não me interessa inovar ao ponto de não se reconhecer a base.
Ao olharmos para os teus trabalhos, vemos uma linguagem muito própria e muito bem definida: uma paleta de cores que é comum a todos os projetos (predominam o azul, o vermelho e o amarelo) e uma fusão do abstrato com o figurativo. Como é que chegaste a esta linguagem estética?
Ao longo do processo, fui-me encontrando. A pandemia foi uma transição para mim, porque até lá eu tinha interesse em explorar diferentes suportes, em separado, mas faltava uma ligação entre tudo. O meu foco começou a ser claro: a tapeçaria e todos os materiais que se podem ligar a ela. Cheguei a esta linguagem de uma forma muito natural. Não me imagino a não usar cor, porque para mim cor é emoção e, consoante a mensagem que quero passar, faço-o através da cor.
Acho que as minhas peças se traduzem em chamadas de atenção e pedidos de suporte. A arquitetura também tem muita influência no meu trabalho e acho interessante cada artista encontrar aquilo que o difere.
E o que é que a arquitetura veio acrescentar ao teu trabalho enquanto artista?
Dá-me muitas coisas boas! Permite-me entender o meu trabalho por áreas e um arquiteto tem uma sensibilidade para a geometria. Tenho a parte do desenho, mas também do projeto e permite-me, quando quero fazer uma peça tridimensional, explorá-la ao máximo, tanto na fase de produção como na pré.
Pretendes dedicar-te a full time ao teu projeto individual ou interessa-te estar também associada à arquitetura?
O meu objetivo é ser artista plástica a full time, mas se surgir um projeto interessante associado à arquitetura eu aceito, porque adoro desafios. Sou representada pela galeria THIS IS NOT A WHITE CUBE e faço o meu trabalho artístico para depois ser vendido a colecionadores ou a quem deseje ter uma peça minha e, ocasionalmente, tenho um cliente (muitas vezes um arquiteto) que procura incluir uma peça num projeto e aí há um trabalho de equipa diferente, em que já não depende só de mim.
Para mim cor é emoção e, consoante a mensagem que quero passar, faço-o através da cor.
Ao observar as tuas obras, vemos uma predominância de temáticas em torno da mulher, do corpo humano e da representação de alguns estados mentais. Que mensagens te interessam explorar com as tuas obras? Partem de inquietações?
Sinto desde sempre, não sei bem explicar porquê, que tenho uma missão: proteger as mulheres da minha família. Sinto sempre que estou em defesa e tive uma fase em que o meu trabalho tinha uma mensagem um pouco agressiva. Era como se eu estivesse a falar diretamente com alguém que pratica algum mal. Falo para mulheres e sobre liberdade, amor, útero, casa. Falo de uma chama que a mulher vai perdendo ao longo do tempo, uma chama que nasce connosco (mulheres) e que se vai apagando e eu refiro-me, precisamente, a esse reacender. Tenho um trabalho muito feminino nesse sentido, mas também me questiono muito sobre liberdade. “Será que somos livres?” Gosto de levar as pessoas a pensar sobre isso, porque acho que é muito comum pensarmos que somos livres, quando não somos. O meu trabalho é para todos, mas depois há uma mensagem que procura dar voz às mulheres e a quem precisar dela. Fui-me apercebendo que a voz das mulheres à minha volta se ia apagando e havia a necessidade de alguém com essa força vir contrariar esse peso. Comecei a contrariar a partir do meu trabalho.
A arte é o teu lugar de refúgio?
Sim! O meu estúdio é o meu refúgio e é onde encontro a força que preciso para estar plena para transmitir esta voz aos outros. Acho que a arte passa isso. Como eu trabalho com o meu pai, ele foi tendo curiosidade para entender o meu trabalho e há pouco disse-me que achava que várias pessoas se iam identificar com a BOADICEA porque a peça é amor. E é mesmo isso: um suporte de ajuda. Tem cores que associamos mais ao feminino e, sendo intencional, levo as pessoas para o universo das mulheres, mas depois entram cores estratégicas como o vermelho, o verde e o amarelo que nos levam para a chama acesa. Há também uma vontade permanente de as figuras estarem em contacto com os lobos que são livres e faço uma analogia às mulheres.
Participas na produção das tuas grandes tapeçarias? Recorres a artesãos locais?
Estas últimas também foram produzidas por mim, mas a grande parte pelo meu pai. Funcionamos os dois muito por desafios e então quanto maior o desafio que lhe proponho mais ele gosta. O artesão tradicional não é assim e eu já trabalhei com alguns que fogem à regra, mas outros assustam-se. Se for um trabalho contínuo em que me vão conhecendo é mais fácil, mas caso contrário é sempre um choque. Há muita coisa que eu faço que já foge da base de arraiolos e que, ao longo do tempo, fui questionando e removendo porque, para mim, não fazia sentido. Há muitos artesãos que têm medo da mudança e também é por isso que procuro as pessoas certas. Quem vier a trabalhar comigo tem mesmo de ter curiosidade para a mudança, porque eu estou sempre a querer quebrar as coisas. (risos)
A BOADICEA foi produzida por mim e por mais duas pessoas (a seis mãos) e o meu pai teve um papel fundamental também. Todas elas passam sempre pelas minhas mãos, mas interessa-me muito trabalhar com artesãos, até porque foi com eles que aprendi, e algumas das residências artísticas que gostava de fazer no futuro passam por trabalhar com artesãos dentro de uma comunidade. Sou como uma esponja, gosto de absorver e passar conhecimento. (risos)
Interessa-te, portanto, essa parte coletiva do teu trabalho, no sentido de colaborares com outros artistas?
Tenho projetos sociais que têm muito que ver com trabalhos de comunidade. Consigo ter o ambiente de galeria e contactar com outros artistas, mas ao fazer parte da Portugal Manual convivo com vários artesãos contemporâneos. Estou sempre associada aos dois universos: a arte contemporânea e o artesanato. Gosto muito de falar com outros artistas e acho ótimo ter a validação deles, no sentido de saber que estou a fazer um bom trabalho e no caminho certo, mas também me interessa pedir opinião a pessoas que não são artistas, mas que são sensíveis.
Sou como uma esponja, gosto de absorver e passar conhecimento.
Quais são os teus planos para este ano? Há alguma exposição ou um trabalho que nos possas apresentar?
Como a exposição (IM)MATERIALITY foi um sucesso, pelo facto de juntar tantos artistas de países diferentes, vai passar para o Centro de Artes de Águeda e vai voltar a ser exposta de setembro a dezembro, em princípio. Estou a trabalhar para uma exposição individual que gostava de fazer para o ano. Para além disso, quero continuar um corpo de trabalho que faça sentido, trabalhar com comunidades e aprender com elas e fazer residências artísticas no estrageiro. Quanto mais aprendemos e sugamos de diferentes áreas, mais o nosso trabalho fica único. Estamos sempre a conhecer outras culturas e técnicas e interessa-me sempre esse lado mais manual e, mesmo dentro do país, há tantas artes que gostava de tocar, como a tapeçaria de Portalegre. Quero pegar nessas técnicas ancestrais e trazê-la para o meu trabalho, misturando-as com a vertente tecnológica que trago da arquitetura.
Como gosto muito da partilha, também criei um podcast, A Cereja no Topo do Bolo, e convido pessoas generosas para conversarmos sobre carreira e dificuldades, porque é um mundo que parece ser tão difícil de entrar que se acaba por criar imensa competitividade. Já conversei com a Iva Viana, por exemplo, que é uma das pessoas mais generosas que conheço. O objetivo centra-se mesmo na partilha!