Talento do Ano – Tiago Castro: “Espero mesmo que a minha arte seja útil às pessoas”
É um ator multifacetado, apesar do seu personagem Crómio manter-se bem presente na memória do público português. Tiago Castro tem 39 anos e, sempre bem-disposto, fala-nos das peripécias da sua vida, dos altos e baixos, da vontade de tornar um sonho realidade. Para ele, 2022 foi um ano de surpresas, entre palcos e ecrãs, numa odisseia constante que o desafia e o leva na descoberta por si próprio. Para a RUA, Tiago Castro é o Talento do Ano 2022.
Agradecimento especial ao Hard Rock Cafe Porto
Costumo começar as entrevistas fazendo um pequeno enquadramento de apresentação do entrevistado e, desta vez, encontrei uma descrição do Tiago Castro que me parece bastante interessante para início da conversa. “Tiago Castro é só mais um comum mortal nascido afastado da margem. À margem dos seus amigos mais altos, escolheu ser ator e para piorar ainda mais o seu caminho de luz decidiu ser comediante”. Em primeiro lugar então, o que é isto de nascer afastado da margem? Que memórias tens de criança?
Felizmente, tive uma infância muito cheia e repleta de boas memórias, mas, ao mesmo tempo, não posso deixar de dizer que, de certa forma, foi uma infância diferente, por eu me sentir e perceber, cedo na minha vida, que era diferente dos meus colegas. Diferente no sentido em que eu era sempre o mais pequeno dos grupos onde eu estava, dos mais pequenos da escola onde eu estudava… Apesar de isso não ter tido impacto nas minhas relações de amizade, nem ter sofrido bullying por isso – ou, se aconteceu, foi uma coisa muito breve –, senti sempre que afetava as minhas paixões. Como sou uma pessoa muito sensível e me apaixonava facilmente, sentir que era recusado ou rejeitado devido a uma característica física sobre a qual eu não tinha controlo foi algo que me marcou. Portanto, isso é a descrição de ter nascido à margem.
Esta escolha por uma carreira de ator surge como? Alguém te influenciou de alguma maneira?
Penso que, desde muito novo, eu tinha uma apetência e um chamamento para a exposição. Nunca tive nenhum problema de vergonha em me expor e ser o centro das atenções. Sempre tive prazer em divertir os outros. Depois, obviamente, comecei muito cedo, no sétimo ou oitavo ano, a fazer as peças da escola. Quando percebi que tinha alguma apetência, fiz testes psicotécnicos para perceber qual seria a inclinação para a representação e bateu na escala máxima. Nada mais indicava aquele teste psicotécnico a não ser teatro. E juntamente com os meus pais, decidi vir estudar para a Escola Profissional de Teatro, a Balleteatro, no Porto, onde fiz três anos. Aí, percebi logo que tinha mesmo um chamamento para a representação. Deixei de ser um aluno medíocre para ser o melhor da minha turma. Também muito cedo comecei a trabalhar. Andava no 11.º ano e já estava a gravar uma série de televisão na RTP Porto. Era muito raro para alguém aqui no Porto, com esta idade, já estar efetivamente a trabalhar. Foi essa sinergia de acontecimentos…
Lusitana Paixão ou Ana e os Sete foram novelas que contaram com a tua participação. Mas é impossível não mencionarmos a personagem do Crómio, que fizeste em Morangos com Açúcar e ainda hoje é marcante na tua carreira. Apaixonaste-te pelo mundo da televisão aí?
Apesar de eu ter tido experiências em novela antes, a verdadeira experiência que eu sinto que tive em televisão foi com os Morangos com Açúcar. Foi uma vivência interrupta de dois anos e três meses, a gravar diariamente. Aí sim posso dizer que tive uma verdadeira experiência de televisão. E gostei muito! Também foram importantes as condições em que o trabalho foi feito e as características da minha personagem. Tive privilégios que muitos dos meus colegas não tiveram quando a novela estava a ser gravada. O meu personagem, em concordância com o realizador e a produção, tinha uma margem de manobra de improviso muito grande. Aliás, muitas das características da personagem surgiram de improvisos meus. A cena acabava e o realizador nunca dizia corta, ficava muitas vezes a continuar a gravar porque dali poderia surgir alguma coisa. Acho que foi o que possibilitou que a minha personagem se tornasse mais complexa e mais completa que muitas das outras na novela. Por causa disso, adorei essa experiência… Não posso dizer o mesmo, por exemplo, da outra novela que fiz a seguir, a Fascínios, antes de eu emigrar. Foi tudo muito mais feito e realizado dentro dos parâmetros normais. Aí teve o efeito oposto, não me senti apaixonado por esse projeto, por esse personagem que eu tinha – que são coisas que podem acontecer naturalmente em qualquer projeto. Nos Morangos foi muito interessante e aprendi bastante!
E foi um personagem crucial na tua carreira em termos de reconhecimento público. Acredito que ainda te tratem por Crómio. Para ti, é uma bênção ou acaba por ser um bocadinho uma maldição ser constantemente reconhecido por essa personagem?
As duas coisas, é uma faca com dois gumes. Eu consegui, através desta personagem, chegar à maioria dos portugueses que nunca me iriam conhecer só pelo teatro ou pelo cinema. Ao mesmo tempo, consegui também que esse personagem possibilitasse que eu conseguisse ter o green card nos EUA, devido à quantidade de artigos que foram escritos sobre o personagem. Portanto, talvez essa experiência nos EUA nunca tivesse acontecido se eu não tivesse participado nos Morangos com Açúcar. A nível financeiro também me ajudou a pagar o meu curso nos EUA.
No entanto, sinto que também me prejudicou em várias coisas… Porque eu tenho a certeza que, se eu não tivesse feito este personagem, a minha carreira seria repleta, até hoje, de outros personagens também impactantes, mas até poderiam ter tido menor visibilidade. Condicionou-me na visão limitada que produtores e realizadores têm de mim, o que pra mim de certa forma é injusto… porque se virem qualquer outro trabalho meu, percebem que não há nenhuma parecença na minha interpretação daquele personagem com outros que eu fiz. Portanto, pensar que estou muito ligado a este personagem e não conseguiria fazer outros é mesmo uma crença limitada.
É, então, importante para ti nesta fase da tua carreira tornares mais evidente essa tua versatilidade enquanto ator? Sentes essa pressão pessoal também?
Sim! É interessante pensar como – mesmo depois de tantos falhanços e de tantas tentativas -, eu ainda aqui estar e viver desta arte. Porque é mesmo algo que está inerente à minha forma de ser. Eu nasci com isto e tenho necessidade de me exprimir, quase que até sinto mesmo uma responsabilidade de o fazer. Porque se tenho impacto quando faço alguma coisa e se, ao mesmo tempo, me sinto sempre desafiado, é um prazer! Acho que agora ainda sinto mais isso porque estou eu próprio a criar o meu conteúdo. Não sinto que seja pela pressão, pela oportunidade de fazer conteúdos que são pensados por mim. Identifico-me mais. Portanto, não é tanto a pressão, é mais a necessidade e vontade de mostrar algo com qualidade.
“É um caminho que ainda estou a conhecer, a desbravar, em que eu começo a alimentar também alguma autoestima enquanto criador de conteúdos porque consigo perceber o efeito que isto tem nas pessoas e, ao mesmo tempo – e eu nunca me esqueço disto –, espero mesmo que a minha arte seja útil às pessoas, é esse o meu principal propósito.”
“É um caminho que ainda estou a conhecer, a desbravar, em que eu começo a alimentar também alguma autoestima enquanto criador de conteúdos porque consigo perceber o efeito que isto tem nas pessoas e, ao mesmo tempo – e eu nunca me esqueço disto –, espero mesmo que a minha arte seja útil às pessoas, é esse o meu principal propósito.”
Tu falas muito abertamente, já em outras entrevistas que tiveste oportunidade de dar, sobre os altos e baixos da tua vida. O que que se faz quando a vida não corre da forma como planeamos? Tu foste para os EUA, fizeste a tua formação, tinhas expectativas… e voltas para Portugal. Qual é o passo quando o teu plano inicial não corre assim tão bem? Existe algum segredo para continuar a avançar?
Há uma metáfora, uma imagem, que, de vez em quando, parece que representa melhor o porquê de eu continuar a avançar e a tentar, a construir e a levantar-me depois de cair. É como um fio de água que vai descendo a colina e encontra barreiras, encontra um tijolo, encontra uma árvore, encontra uma pedra e, por mais que encontre obstáculos, ele vai encontrando sempre uma forma de continuar. É a gravidade que o está a fazer avançar. É quase como não haver nada que o impeça. Vai continuar a correr, vai atravessar o muro e vai sempre continuar. Eu sinto isso. Sinto a gravidade que me está a atrair, a puxar pra continuar a desenvolver, a criar conteúdo, a querer crescer – é uma força que é externa aos meus impulsos mais superficiais! Eu não estou a fazer isto por fama, não estou a fazer isto por reconhecimento público. Tenho a certeza de que ainda cá estou a fazer isto porque é mesmo genuíno, é algo que é muito pessoal.
Nos últimos tempos, encontraste um espaço muito interessante nas redes sociais. Como tem sido teres este papel de criador de conteúdo, numa lógica mais humorística?
Sim, é muito difícil começar. Se tu vires, são poucos os atores que se expõem dessa forma nas redes, porque nem todos têm essa vontade, porque nem tudo é perfeito. As condições com que o fazes são limitadas, não vais ter aquela imagem que tens num filme ou na televisão, tudo é mais rudimentar. E os atores têm dificuldade em expor-se assim dessa forma. Eu como não estou à espera que chegue aqui uma produtora a dizer “nós vamos produzir o teu conteúdo”, então, faço-o da forma que o tiver de fazer.
Surgiu em forma de diretos falsos porque é muito fácil criar aquele conteúdo – fácil no sentido técnico, porque criar o conteúdo é difícil… demoro três dias a fazer um vídeo daqueles! Mas é fácil com as minhas condições criar aquele conteúdo, que pode ser muito interessante. Até ali, não me lembro de ver aquele tipo de vídeos. Lembro-me de ver o Bruno Nogueira a fazer simulações de entrevistas como se estivesse num programa de televisão, mas os diretos de Instagram em que está mesmo uma pessoa a falar com outra ao mesmo tempo, como se fosse uma conversa verdadeira, ainda não tinha visto. Explorei isso porque funcionou muito bem. Nos primeiros dois vídeos, as pessoas acreditaram mesmo que estavam a ver uma conversa que tinha acontecido. Por isso é que foi tão viral, foi tão difundido. Eu nunca pensei que aquilo pudesse acontecer. As conversas eram tão ridículas. Fiz com a Rita Pereira, com o Cristiano Ronaldo, com o Fernando Santos, até fiz com a Jennifer Lopez em inglês… Depois, de repente, comecei a querer criar conteúdo mais regularmente e que pudesse chegar a qualquer pessoa mesmo que ela não soubesse português, inglês…
Ou que não reconhecesse os personagens portugueses…
Exatamente! Que pudesse estar disponível e de fácil perceção para qualquer pessoa em todo o mundo. Comecei a criar uns vídeos, um deles foi um de dança que, passado três semanas de o fazer, tinha tido mais visualizações que o normal. Sei lá, 40 mil visualizações naquele período em que normalmente o vídeo está a ser partilhado nas redes portuguesas. Mas, passado três semanas, as minhas redes começam mesmo a disparar, não havia um momento que não tivesse notificações a surgir e eu percebo que o vídeo já tem mais de um milhão de visualizações. Depois, começam a surgir páginas de mais de 3/4 milhões a partilhar o vídeo, muita gente estrangeira a seguir-me… começo então a criar vídeos parecidos com aquele e foi uma bola de neve. Tive a júri principal do programa Dança Com As Estrelas italiano a contactar-me, dizendo que adorava fazer um direto comigo e com dois dos bailarinos que eu também tinha feito uma paródia. Ganhou estas proporções!
Depois deste sucesso no Instagram, surge a oportunidade de levares um espetáculo de stand-up aos palcos portugueses. Como surgiu o espetáculo Daqui de Baixo?
Em primeiro lugar, era um sonho meu tornar-me criador do meu próprio conteúdo. Sempre tive medo por achar que era demasiado perfecionista para conseguir alguma vez começar sem ter tudo pronto, porque quando uma pessoa começa sozinha é muito mais difícil. Depois, comecei a ser empurrado pela minha esposa para criar o meu conteúdo e ir para bares interpretá-lo. Então comecei a fazer dez ou 15 minutos em bares e a perceber, rapidamente, que aquilo estava a surtir efeito. Tinha feito três ou quatro vezes e tinha a Nespresso a convidar-me para fazer o lançamento de uma nova máquina. Com tão pouca experiência comecei a perceber que aquilo estava, realmente, a surtir efeito. Ganhei coragem para escrever eu mesmo o meu próprio espetáculo.
O espetáculo transformou-se em algo muito maior do que aquilo que eu estava à espera, porque realmente a minha vida é repleta de momentos que podem, se forem bem contados, criar impacto. Muitas histórias que muita gente teria vergonha ou não teria o à vontade para as expor, eu conto-as com distanciamento e com humor. É muito interessante porque, ao mesmo tempo que as pessoas se riam no meu espetáculo, também choravam. Tive testemunhos de psicólogos, que vieram ver o espetáculo, a dizer-me “É mais barato vir a um espetáculo teu do que pagar uma consulta de psicoterapia”. Este espetáculo surpreendeu o público, porque não estavam à espera daquilo que conhecem de mim, que era o Crómio ou aquilo que eu faço nas redes sociais. Não estavam à espera que viesse um espetáculo tão profundo. Apesar de ser stand-up, porque sou só eu que estou lá, penso que é um espetáculo completo e muito vulnerável.
Que tipo de questões é que trazias?
Eu falo muito sobre o sucesso: o que é o sucesso? Eu fui atrás de um sonho, sacrifiquei tudo aquilo que eu tinha na minha vida para ir para os EUA, perdi uma relação que eu tinha, afastei-me da minha família, por causa de um sonho e de uma ambição cega. Isso fez-me questionar muito o que é o sucesso. É eu estar lá em cima e sem mais nada à minha volta? Ou é eu durante o dia a dia da minha vida, ser uma pessoa realizada, grata por aquilo que eu tenho e por ter saúde? Eu reflito sobre isso. É o quê? O carro que nós temos, é a casa? Porque se for o carro, eu até há bem pouco tempo tinha um Fiat Punto do ano 2000 todo cascado e de tão velho que estava a panela caiu de podre e eu tive de atá-la com o meu próprio cinto à carroceria do carro para chegar a casa, portanto, não tenho sucesso. É a casa? Vivo num T1 de 30 metros quadrados, em que sala de jantar, sala de estar, cozinha e marquise é tudo a mesma coisa. Estou a jantar, dou dois passos, estou na sala de estar, dois passos e estou a ver a vista na marquise, mais dois passos e estou a lavar os pratos… É no número de parceiras sexuais que eu tenho ao longo da vida? Não, porque conta-se pelos dedos da mão, incluindo a própria mão, que foi a parceira mais requisitada. Pronto, isto é um excerto de parte do meu espetáculo, em que eu tento transformar estas minhas vivências em humor. Em que eu falo de uma fase muito difícil da minha vida, por exemplo: eu num dia estava a sair de teatros como o Rivoli, o Coliseu e a entrar em limusines e, no outro dia, estava a limpar retretes em Nova Iorque. O problema não é eu ter estado a limpar retretes, que é um emprego completamente normal, o problema é que eu fui despedido por não saber fazê-lo e nem me pagaram. Para acrescentar ainda mais à festa, entrei a trabalhar num restaurante, passado um ano e meio fecham e ficam-me a dever 12 mil dólares. Uma rapariga com quem eu namorava, mal o restaurante fechou traiu-me com um moldavo de 1,95m. Com isto surge a maior depressão da minha vida.
Quando regressei a Portugal, aluguei um quarto numas águas furtadas em Lisboa que nem eu cabia lá em pé! Isto são coisas que, vistas agora com distanciamento, conseguimos rir delas. É essa mensagem que eu procurei passar no meu espetáculo. Que quem estiver a passar por alguma coisa que agora acha que não tem saída, um dia vai poder estar a rir-se. Isto vai ser o início de um caminho que desconhecem. Eu nunca pensei que me iria casar, que eu iria alguma vez voltar a sorrir. Os meus pais hoje dizem-me: “Nem com 18 anos tu eras assim, já estavas todo frito da cabeça”. Porque quando fui para o conservatório, comecei logo a levar tudo muito a sério. Mas quando eu era miúdo era esta a energia. Eu ria-me muito, eu dançava, cantava, a casa nunca estava vazia. Eu perdi isso! Nunca achei que pudesse voltar a conquistar.
Podemos assumir então que este caminho de comediante de Tiago Castro está apenas a começar?
É um caminho que ainda estou a conhecer, a desbravar, em que eu começo a alimentar também alguma autoestima enquanto criador de conteúdos porque consigo perceber o efeito que isto tem nas pessoas e, ao mesmo tempo – e eu nunca me esqueço disto –, espero mesmo que a minha arte seja útil às pessoas, é esse o meu principal propósito. Eu entrego-me dessa forma, não estou à espera de receber os aplausos e as recompensas, os prémios… não é por aí. Tenho sentido que tenho afetado de forma positiva o público e só isso já me dá coragem e vontade de continuar a desenvolver conteúdo.
O que queres fazer daqui em diante? O que está na tua caixa de desejos?
Tal como escrever o meu próprio conteúdo foi um desejo – um desejo antigo, aliás -, espero que daqui a alguns anos eu possa estar a concretizar outro desejo, que é escrever conteúdos meus, mas para cinema e televisão. Que eu consiga passar também esta minha visão do mundo para uma série, para uma curta-metragem, para uma longa-metragem. Que eu conte histórias, esta minha forma de ver o mundo, nesses formatos. Seria esse mesmo um dos sonhos a concretizar. E já tenho ideias: adorava que existisse uma série em que todos os planos vissem-me só a mim e, as pessoas que estão ao meu lado, o espetador só as visualizasse pelo peito. Nunca conseguiam ver a cara das pessoas que estavam comigo, para se perceber a perspetiva de alguém com 1,58m (risos). Gostava que as pessoas percebessem este mundo. Nós estamos cá em baixo a ver as pessoas de baixo (risos) Quem sabe se um dia vocês estão a ver uma série em que só me veem a mim e os outros estão pelo pé (risos).